É uma doença invísivel, mas os seus efeitos podem ser devastadores no dia-a-dia. Reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como uma doença reumática, desde 1992, a fibromialgia afeta cerca de 2% da população portuguesa, com especial incidência nas mulheres dos 20 aos 50 anos. Caracteriza-se pela dor músculo-esquelética, mas tem outros sintomas que condicionam gravemente o quotidiano dos seus portadores.

Jaime Branco, especialista em Reumatologia no Hospital Egas Moniz, em Lisboa, e antigo presidente da Liga Portuguesa contra as Doenças Reumáticas e da Sociedade Portuguesa de Reumatologia, explicou que outros sintomas estão agregados à doença. “A fibromialgia está associada a outros sintomas como alterações do sono, sono não reparador – isto é, a pessoa acordar mais cansada do que se deitou na véspera -, fadiga ou alterações cognitivas, nomeadamente ao nível da memória, atenção ou capacidade de concentração. Há outros sintomas como alterações do trânsito intestinal, diarreias, depressão, formigueiros ou o fenómeno de raynaud”.

Um dos principais flagelos enfrentados pelos doentes com fibromialgia, prende-se com a espera pelo diagnóstico. O psicólogo Ricardo Campos, autor de dois artigos (1, 2) em revistas da especialidade a nível mundial, revela que entre o início dos sintomas e o diagnóstico decorrem, em média, “cerca de 10 anos”: “Os pacientes andam a saltar de especialidade e as respostas não surgem. Os sintomas vão-se mantendo ou até mesmo agravando e começam-se a desenvolver explicações catastróficas: ‘deve ser tão grave que os médicos não querem dizer’, ‘devo estar tão mal que nem os médicos sabem dizer o que é…’. A ausência de explicações mantém os sujeitos num estado de stress crónico que pode provocar um efeito tóxico a nível cerebral”, diz.

Viver Com Fibromialgia

Jaime Branco foi pioneiro na abordagem à doença em Portugal. Dedicou-lhe parte da sua experiência clínica e tempo de investigação científica. É ainda co-autor, juntamente com a jornalista e política Maria Elisa Domingues, do “livro Viver com Fibromialgia”. Um livro “útil para a população com fibromialgia, mas também para os seus familiares, colegas de trabalho, amigos e empregadores perceberem o que é esta doença que não se vê”.

Outro dos problemas inerentes à doença tem a ver com o ceticismo que a rodeia. Em vários meios, e em particular no clínico, as dúvidas persistem quanto à sua efetividade. Nesse sentido, Ricardo Campos alerta para a escassa sensibilização que tem sido feita: “A comunidade clínica tem sido pouco sensibilizada para o problema, o que não ajuda ao esclarecimento da perturbação”, afirma. Jaime Branco complementa e traça um quadro que até já conheceu piores dias: “Sei que esse ceticismo em relação à existência e importância clínica da fibromialgia existe, mas felizmente já foi maior do que é.”

Da dor física à dor psicológica

A dor é o principal entrave à qualidade de vida de um doente fibromiálgico e os seus efeitos contínuos podem estar na génese de outra patologia que muitas vezes lhe é indissociável: a depressão. “Saber que hoje se deita com dor, amanhã se acorda com dor… e isto todos os dias, todos os meses, todos os anos, é uma situação que pode levar à depressão reativa”, realça Jaime Branco. Já Ricardo Campos, alude ao desalento dos doentes perante a dor continuada: “Hipotetiza-se que os sintomas depressivos se associam à incapacidade dos pacientes em lidar de forma adaptativa com a dor. Por outro lado, ao não haver tratamentos realmente eficazes, os pacientes apresentam elevados níveis de desesperança”

“Tomar um simples duche pode ser uma tarefa muito difícil”

Joana Vicente, de 24 anos, é uma jovem que vive refém da fibromialgia. A doença condiciona-a e impede-a de levar uma vida normal. Mentalmente, diz-se exausta. “Muitas vezes as dores são incapacitantes e podem durar meses. É frustrante não conseguirmos fazer coisas banais do dia-a-dia e isso acaba por gerar a depressão. Tomar um simples duche pode ser uma tarefa muito difícil. Parece que estamos em esforço 24h sobre 24h. Há alturas em que o corpo simplesmente não aguenta e vêm as tais crises”, conta.

Tratamento I

As opções de tratamento variam de caso para caso. No de Joana, há a conjugação de dois tipos. “Combato a doença com a medicação diária. Se estou com muitas dores, recorro ao saco de água quente e se as dores não vão embora tomo um analgésico. Cheguei a complementar com algumas terapias alternativas como hidroterapia e terapia de bowen.

Joana também também parte do grupo de portadores que sentiu na pele a suspeição relativamente à doença . Aos olhos dos outros, os sintomas permanecem invisíveis. Verbalizá-los também não resulta: “É devastador. Sofremos imenso, sobretudo quando ouvimos certas coisas de pessoas que julgávamos ser importantes para nós. Em relação aos médicos, vamos com um desespero tão grande e em vez de sermos ajudados, ainda somos gozados. É como se fôssemos atropelados por um comboio”, garante.

Além de condicionar o presente, a fibromialgia deixa marcas para o futuro. A dificuldade em estudar é um dos efeitos colaterais mais latentes entre os jovens. “O que tenho mais dificuldades em fazer é estudar. A minha memória e perceção das coisas está completamente diferente. Depois entro em stress e fico super deprimida, pois quero e tenho vontade de estudar, mas o meu cérebro não corresponde. Isso gera mais dores devido ao stress, então é um ciclo vicioso”, confessa Joana.

“Por vezes só me apetece cair no chão e deixar-me ficar”

João Ribeiro, de 24 anos, faz parte da minoria de jovens do sexo masculino a quem foi diagnosticada a doença. Sabe que os dias nunca mais serão os mesmos, e tenta adaptar-se a essa realidade, mas ainda não venceu o inconformismo: “Por vezes é difícil explicar o que sinto com a fibromialgia, de que maneira me afecta. Com o tempo fui-me mentalizando de que nada poderia ser como antes e, mesmo assim, nas alturas em que tenho crises de dor mais fortes, ainda me vou abaixo e percebo que ainda não aceitei e se calhar nunca aceitarei a doença”.

As dores manifestam-se até nas ações mais elementares do dia-a-dia e a vontade, por vezes, é a de se render perante um inimigo que não lhe dá tréguas: “Pegar em qualquer objecto que pese mais um bocadinho é uma tarefa difícil. Por vezes, apesar de tentar mostrar boa cara, só me apetece cair no chão e deixar-me ficar. Mesmo fora dos períodos de crise, a dor está sempre lá: nos dedos, enquanto escrevo no computador, ou no pescoço e canelas, enquanto ando. É um peso constante que tenho de carregar e isso afeta tudo no meu dia-a-dia; não só as minhas atitudes e a minha disposição, mas também se saio mais ou menos de casa nesse dia”.

Tratamento II

Após resultados menos satisfatórios com a medicação, João Ribeiro optou por procurar outras formas de ser ajudado. “De há uns meses para cá comecei a fazer hidroterapia e tenho-me dado bem. Também tenho pesquisado sobre de que forma a comida me pode ajudar e vou consultar um nutricionista para tentar estipular uma dieta. Por isso, neste momento tento apenas controlar a doença procurando ter sempre uma boa noite de sono e tentar não me esforçar em demasia”.

Para João, as dores também são o prelúdio de um estado anímico vulnerável. Cada vez mais, as recordações indolores desvanecem-se: “É impossível não ser afetado psicologicamente pela doença. Sou jovem e sinto-me velho. Há semanas atrás vi uma pessoa baixar-se e comecei a pensar se ela teria sentido dor com aquele movimento… É como se eu andasse a esquecer de como era a vida antes da dor. Por isso, basicamente, o que me afecta mais é ter de viver em torno da doença”.

As perspetivas futuras também vivem sob a penumbra da doença. O medo é o de um futuro alicerçado em pilares tão frágeis que constantemente ameaçam ruir: “Talvez seja por cobardia, mas evito pensar no futuro. Evito pensar em como vou conseguir trabalhar mais e viver a minha vida adulta com todas as responsabilidades financeiras que essa vida acarreta. Neste momento, por vezes, ao fim das minhas três horas de trabalho diárias chego a casa a querer gritar de dor”.

Falta um “olhar mais informado” sobre a fibromialgia na sociedade

Não é só ao nível da medicina que a fibromialgia carece de total assimilação. Parte da sociedade ainda desconhece ou desvaloriza a doença. “Custa-me imenso ir a um médico novo ou até falar com alguém que já não vejo à imenso tempo, pois tenho medo de ser julgada. Ou conhecem e não acreditam, ou, se não conhecem e eu explico, parece que estou a falar de uma coisa simples e nada de especial. Isso deixa-me triste”, confessou Joana Vicente. Por seu turno, João Ribeiro assume que “a doença é muito incompreendida pelas pessoas.”

De acordo com Jaime Branco, a explicação para o descrédito dos outros em relação à doença tem um explicação simples: “A dor não se vê. É uma coisa subjetiva, pessoal. Nesse sentido, quando alguém diz que tem uma dor, a outra pessoa acredita ou não acredita. Não há terceira hipótese”.

Grupo no Facebook

Joana Vicente é a fundadora do grupo no facebook dos Jovens Portadores com Fibromialgia – que já conta com quase 900 membros – e mantém um papel ativo na sensibilização da doença. Criou a comunidade “num dia em que estava cheia de dores” e enquanto navegava na internet, “chateada e frustrada por não haver informação sobre a doença em português”. O grupo fomenta a partilha de casos, informações, entre outras contribuições para a melhoria no combate à doença em Portugal

Relativamente a este tema, o psicólogo Ricardo Campos alerta para a importância da comunicação social na difusão de informações relevantes: “Apesar de já haverem tratamentos de diversas disciplinas, com resultados promissores, a sua assimilação no terreno está a ser demorada. Esta décalage entre ciência e prática só poderá ser encurtada através de formação e divulgação. Através da formação dos técnicos que estão no terreno e da divulgação de dados através dos meios de comunicação social. Esta informação permite sensibilizar a população para esta temática que passará a ter um ‘olhar mais informado’ sobre a fibromialgia.”

É possível viver uma vida normal. Mas não é fácil.

Apesar do pessimismo e da descrença que assola os doentes com fibromialgia, Jaime Branco defende que é possível terem uma vida normal. “Primeiro têm de ultrapassar a barreira da revolta, pois só vai piorar. Têm que pensar como se pode combater a doença; como é que se pode passar melhor ou mesmo não ter sintomas. Isso consegue-se seguindo as instruções do médico, desde que este entenda e esteja capaz de ajudar. É preciso seguir as indicações da terapêutica farmacológica, mas também os tratamentos além da medicação”.

No entanto, apesar de algumas respostas poderem ter um papel determinante na maneira como os portadores conseguem conviver com a doença, o psicólogo Ricardo Campos relembra que a “remissão dos sintomas é rara e transitória”, ou seja, quando os sintomas desaparecem totalmente. Acrescenta ainda que os mesmos persistem por um período mínimo de “três anos após o diagnóstico, apesar do tratamento farmacológico”.

No caso de Joana Vicente e João Ribeiro, verificou-se precisamente isso. “Há dias em que consigo levar uma vida ‘normal’, mas conheci casos de pessoas que estão mesmo incapacitadas, dependentes da ajuda dos familiares próximos e até mesmo em cadeira de rodas”, diz Joana. Também para João, a ausência de dor foi por um período reduzido de tempo… Mas valeu a pena: “Há meses atrás tive a sorte de ter quase uma semana em que a dor era praticamente nula. Esquecer nunca esqueci, mas foi uma boa sensação…”.