Chegando ao fim da linha em Azevedo de Campanhã, entra-se num mundo à parte. À medida que se avança pelo bairro do Lagarteiro, os prédios remodelados e luminosos dão lugar a outros degradados e sombrios. Ainda que o silêncio dominasse o início da caminhada, a realidade espreitava das janelas com vozes estrondosas e insultos pesados.

“Não é o bairro que me define”

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Os jovens reúnem-se num local específico: o “pavilhão novo”. Inaugurado em 2011, o Pavilhão do Lagarteiro dispõe de uma área desportiva principal, uma sala multiusos e outras salas para atividades promovidas pelo programa “Escolhas”. Numa dessas salas – um estúdio improvisado e insonorizado com caixas de ovos -, estão Rui e Tiago numa das suas sessões musicais habituais.

Com 24 e 27 anos, respectivamente, ambos procuram refúgio na música: são membros da banda “B13”. Já não residem no Lagarteiro, mas as origens e as preocupações com as questões sociais do bairro perduram.

Fuga à “vida de bairro”

Rui Gomes viveu no Lagarteiro desde que nasceu e só recentemente abandonou o bairro “por opção de terceiros”. Mas isso não o impede de voltar, seja por questões relacionadas com a banda, seja para conviver com os amigos. Se tivesse de escolher o caminho do ensino superior, Rui admite que gostaria de ser professor de dança. No entanto, ficou pelo 9.º ano e para já aprofundar as habilitações literárias não faz parte dos seus planos.

A dança e a música são as suas principais fontes de rendimento. Até ao momento, não se candidatou a nenhum trabalho, mas admite a necessidade de esconder as origens caso isso aconteça. A razão para tal é a imagem de “insurrectos e insolentes” associada aos residentes do bairro.

Na sua tese de mestrado, “A Infância no Bairro do Lagarteiro: Modos de Ser Criança em Territórios de Exclusão”, Maria João Pereira afirma ser comum os jovens quererem alterar as suas moradas para esconder que são do Bairro, porque, “para já, a palavra bairro tem uma conotação negativa. Pelo menos neste contexto. Neste tipo de bairros sociais. E as pessoas que lá vivem estão sempre associadas a pessoas que são subsídio-dependentes, que todas recebem o RSI”.

Rui aprendeu com o descarrilamento dos mais velhos, garante, e tem a certeza que não segue o ritmo de muitos dos seus colegas. “Eu vejo que segui um caminho diferente do dos meus colegas, mas não sou melhor que eles de certeza. Todos nós temos um lado bom e um lado mau e esse lado mau os meus colegas não fazem tanta questão de esconder, essa é a única diferença”.

O aperto da vida

O desejo de constituir família e de lhe proporcionar melhores condições de vida obrigou Tiago Jesus a sair do bairro do Lagarteiro. O que o prende ainda são a mãe e a banda. Recentemente tornou-se colaborador do projeto “Escolhas”, onde partilha a sua experiência musical com os mais novos, através de conversas e visitas ao estúdio.

A par de relações familiares e de amizade entre os residentes, persistem ainda inúmeros casos de violência e toxicodependência. “É óbvio que nem toda a gente do bairro é assim, mas é isso que nos garante a fama”, explica Tiago.

“Se nós não aprendemos nada não ganhamos vontade de sair daqui, não é?”

Com o ensino secundário concluído, Tiago já teve experiência no mercado de trabalho e foi obrigado a ocultar o local de residência. “Eu já trabalhei num hotel e quando fui à entrevista disse que morava na Rua José de Brito, perto de Campanhã. Se eu dissesse Bairro do Lagarteiro tinha menos hipóteses de entrar, de certeza”. Contar a verdade não abre as portas, independentemente da aptidão para o cargo.

Mas não são só as origens que assombram os residentes do Lagarteiro. As dificuldades económicas e financeiras e a precariedade em geral ainda estão enraizadas no seu quotidiano. “É preciso um posto de oportunidades, com formações, para aproveitar o talento de cada um de forma a sair da vida de bairro, porque se nós não aprendemos nada não ganhamos vontade de sair daqui, não é?”. Querer mudar não significa esquecer, até porque “a marca Lagarteiro forma-nos como pessoas e acompanha-nos sempre”.

A realidade em constante mutação

Paula Ferreira, mentora do projeto “Lagarteiro e o Mundo”, conhece o Lagarteiro como a palma da sua mão, dada a contínua convivência com crianças e jovens. Com um público-alvo dos 6 aos 24 anos, o projeto encarrega-se da inclusão social.

De acordo com Paula, as crianças e jovens não são imunes à conjuntura económica e social que se vive. A falta de dinheiro, os cortes e reduzidas oportunidades de trabalho “tornam a situação familiar muito grave”, e isto reflecte-se nos jovens e nas crianças: “Começam os consumos, tornam-se mais violentas e entram numa fase de insucesso escolar”. Este clima tem vindo a agravar-se desde há dois anos, explica Paula.

Para colmatar estes problemas, o projeto incluído no programa “Escolhas” desenvolve atividades recreativas, desportivas, pedagógicas e de inclusão digital, através das quais procura incutir na geração mais nova a importância da inserção profissional. “Mais de 40% destas pessoas nunca estiveram no mercado de trabalho. Ou seja, são famílias que foram transitando do rendimento mínimo para o rendimento social de inserção e alguns estão agora na compensação de invalidez”, diz.