Foi no dia 24 de março de 1915 que se publicou o primeiro número da revista Orpheu, que coligou esforços literários luso-brasileiros do início do século XX. Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Luís de Montalvor e Ronaldo de Carvalho são alguns dos nomes associados à Orpheu que, mais do que uma peça impressa, espelhou um forte movimento literário modernista.

Programada para uma saída trimestral, a revista acabou por não publicar mais do que dois números, devido à falta de financiamento. Ainda assim, esteve longe de cair no esquecimento, sobretudo pelas novidades introduzidas e as críticas a que foi sujeita.

Tida como a primeira montra das vanguardas modernistas em Portugal, não foi bem acolhida pelas escolas literárias dominantes, nem bem retratada na imprensa nacional. Todo o incêndio causado por Orpheu levou, no entanto, a que as vendas disparassem.

Rutura literária sem precedentes

Portugal estava longe de estar preparado, em 1915, para receber os poemas de Orpheu. Enquanto poetas como Teixeira de Pascoaes ou Afonso Duarte se afogavam no saudosismo e no passado, a nova geração queria cantar o futuro, a máquina, a civilização moderna. E não foi só a nível temático que arriscou, mas também ao nível da forma e dos recursos utilizados.

Poemas como a “Ode Triunfal“, de Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa), são o espelho desta apologia inovadora das sensações e da vanguarda, bem como as pinturas futuristas de Santa-Rita Pintor.

Orpheu fez-se de jovens poetas homens, ávidos de uma rutura com o passado literário e em busca de uma nova identidade nacional. A única presença feminina verificou-se, apenas, no heterónimo do açoriano Armando Cortês-Rodrigues, Violante de Cysneiros, que assinou o segundo número da revista. O diretor da publicação foi António Ferro, na altura ainda menor de idade.

O impacto no percurso literário português

À conversa com Pedro Eiras, docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), o JPN ficou a conhecer as repercussões que Orpheu causou no decurso da literatura nacional até à atualidade. O professor caracteriza a revista como um “encontro de vozes que, por um lado, pretendem seduzir”, mas cuja novidade surge ao nível do “chocar” a audiência. Abre caminho, assim, a uma conceção de “arte com uma função negativa, de escrever com e contra o outro”.

Pedro Eiras refere o “Poema 16“, de Mário de Sá-Carneiro, como espelho desta dualidade intencional criada pelos poetas desta geração. Embora os primeiros versos se desenrolem de uma maneira “bastante consensual, num simbolismo já conhecido pelo público”, o escândalo é gerado de seguida, em passagens como “As rãs hão de coaxar-me em roucos tons humanos/ Vomitando a minha carne que comeram entre estrumes…”.

Sá-Carneiro “não é inocente”, sabe que está a levar o público “a um lugar de histeria” e introduz um conceito de dor que se opõe ao “cliché” mastigado pelos românticos. O professor vê, aqui, um jogo entre este nova conceção de sofrimento e o absurdo, dicotomia transposta, por exemplo, para as obras da contemporânea Adília Lopes, poetisa que gera, através de “objetos microscópicos” – do ponto de vista lírico -, uma tristeza “íntima e dolorosa”.

Tal como aconteceu na altura de Orpheu, também os poemas desta autora foram sujeitos a críticas, o que tornou o seu percurso literário mais difícil, no início. Ainda assim, “não haveria Adília sem ter havido Sá-Carneiro”.

Cem anos para digerir Orpheu

Pedro Eiras refere que o 100.º aniversário de Orpheu foi um acontecimento valorizado, no entanto, confessa que esta não era a intenção dos seus criadores, em 1915. Cem anos depois, os “objetos obscenos” patentes na revista são “peças de museu, produtos comerciais e de citação fácil”, o que se afasta dos ideais destes autores.

O professor salienta, assim, que a comemoração deve pressupor “novas leituras” deste material, por exemplo, “ler Sá-Carneiro através de Adília Lopes ou Fernando Pessoa através de Herberto Hélder“. Isto porque “Orpheu não tem de estar no nosso passado, na vitrine de um museu: está a ser transformado, reinventado, cem anos depois”.

Para celebrar este centenário, a Fundação Eng. António de Almeida participou num congresso internacional. No passado dia 19, ocorreu um colóquio subordinado ao tema “Orpheu e o Modernismo português” e foram inauguradas duas exposições, nas instalações da Fundação, “Memória d’Orpheu” e “A Fundação Eng. António de Almeida e o universo pessoano”.