Alberto tem “olhos bogalhudos e um sorriso contagiante”, António – ou Sr. Abreu, como lhe chamam -, “gostava de ter sido médico da mente” e conhece de cor “todas as patologias psiquiátricas”. Zé Pedro, 48 anos, divide o coração entre o comunismo e a pintura; enquanto Joaquim Carvalho o dedica inteiramente a Emília. Torres é quem dirige o café onde todos convivem: entre um cafézinho, um cigarrinho, uma moedinha e outro cafézinho – porque um não basta.

O Conde Ferreira

“O Hospital Conde de Ferreira é a primeira construção de raiz feita para a psiquiatria em Portugal, implementado por disposição testamentária do Conde de Ferreira, atualmente gerido pela Santa Casa da Misericórdia do Porto. Inaugurado a 24 de março de 1883, o Hospital acolhia doentes de vários estratos sociais. Ali, fizeram carreira alguns dos mais conceituados psiquiatras portugueses, como Júlio de Matos ou Magalhães Lemos.

São estas as personalidades que “vagueiam pelos corredores. Circulam sós. Esperam”, entre “terapias que apelam aos sentidos” e “rotinas que os puxam para a realidade”. São eles que dão vida “aos espaços de um hospital psiquiátrico”, onde “a lucidez e a loucura vivem juntas”. São eles quem faz a história de “Pára-me de repente o pensamento”, um filme com a assinatura do realizador Jorge Pelicano que explora as histórias do Centro Hospitalar Conde Ferreira, no Porto.

“Quis, acima de tudo, fazer uma espécie de update do que é aquela realidade”, conta o realizador. E claro, “fazer com que as pessoas tenham um estigma menor”, porque “desde sempre que aprendemos ou fomos educados a olhar para estas instituições de uma forma um bocado estranha, afastada”.

A história real

Prémios

“Pára-me de repente o pensamento” é uma produção Até ao Fim do Mundo, com colaboração do TNSJ, e já ganhou diversos prémios – destaque para o Grande Prémio do Caminhos do Cinema Português Festival (2014) e o Signes Award, do Festival Internacional Siges de Nuit, em Paris (2014). Integrou ainda a seleção do Magnificent Seven, em Belgrado, um festival que apenas apresenta os sete melhores filmes que participaram nos maiores festivais europeus. 

E apesar das quase duas horas de filme e das 250 de brutos, muitas histórias ficaram por contar. Como fio condutor e elemento desafiador, Miguel Borges entrou na trama: “um ator que procura a sua personagem para uma peça de teatro, submergindo no mundo interior dos esquizofrénicos” e que conviveu com Alberto e os comparsas durante três semanas.

O desvio seduz, a norma não. O cinema ficcional não resistiu a essa sedução. Exagerou ainda mais o que já é exagero por natureza e estereotipou a imagem do doente mental. Loucos, violentos e perigosos. Entrei nas alas psiquiátricas do Centro Hospitalar Conde de Ferreira, no Porto, encolhido. No meio das muitas conversas, um utente esquizofrénico questiona-me: ‘Sabes porque é que os muros deste hospital são tão altos?’ Disse-lhe que não sabia. ‘É para os malucos não entrarem cá para dentro!” Deixei de ter medo'”. Jorge Pelicano

Ao todo, foram cerca de oito semanas de trabalho de campo. As quatro primeiras, sem a câmera e sem Miguel, permitiu à equipa “identificar e mapear rotinas”. As outras, com Miguel a “dirigir” a narrativa, possibilitou beber diálogos e desmistificar conceitos. Ali, “há muita lucidez no meio de alguma loucura”, garante-nos Pelicano.

Miguel Borges, em imersão no dia-a-dia desse antigo “hospital de alienados”, acaba por integrar o grupo de teatro terapêutico. Ali, ensaiam um espetáculo sobre os 131 anos do hospital, no qual o ator profissional acaba por tropeçar em Ângelo de Lima, “poeta louco” que viveu quatro anos internado no Conde de Ferreira e personagem a que vai dar vida.

“Pára-me de repente o pensamento” é precisamente o primeiro verso de “O Tédio”, do poeta português, publicado há 100 anos na revista Orpheu, com um olhar sobre esse “abismo súbito rasgado” que é a esquizofrenia.

Jorge Pelicano

Jorge Pelicano nasceu na Figueira da Foz, em 1977. É licenciado em Comunicação e Relações Públicas e pós-graduado em Comunicação e Jornalismo pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Foi repórter de imagem da SIC entre 2001 e 2012. Estreou-se no documentário com Ainda há pastores? (2006), seguiu-se Pare, Escute, Olhe (2009), sobre a desativação da linha ferroviária do Tua e desde fevereiro de 2013 desenvolve o seu trabalho como realizador de documentários na produtora Até ao Fim do Mundo.

O filme está agora em exibição, até 13 de maio, no UCI Arrábida Shopping, com sessão dupla: às 13h45 e às 18h45. Já no Cinema City Alvalade, pode ser visto todos os dias, até à mesma data, às 19h40. A estreia a norte, a 7 de maio no Teatro Nacional de São João, teve casa cheia. A lotação esgotada encheu de orgulho Jorge Pelicano, a equipa e os convidados especiais: os utentes do Conde Ferreira fizeram rir no ecrã e emocionar em palco.

Muitos dizem que esta é, talvez, a consolidação de Jorge Pelicano no mundo da realização. O próprio não acredita: “Ainda tenho um longo caminho a percorrer. Este é mais um passo para fazer cada vez melhor cinema, contar histórias com uma perspetiva interessante e moldar cada vez mais o meu pensamento para um pensamento cinematográfico. Ainda há muitos livros que ainda tenho que ler e muitos filmes que ainda tenho de ver”, afirma.