Em 1992, quando Jorge Paupério chegava ao estúdio da RTP para gravar a voz do narrador da série Completamente Selvagens, deparava-se com diversos pedidos de autógrafos. Há ainda quem hoje em dia se recorde da série. Aliás, Jorge costuma até dizer que a voz o persegue.

Há mais de 30 anos que trabalha no mundo das artes e, embora já tenha passado pela televisão e pela rádio, a sua voz é reconhecida na rua pelos papéis que desempenhou. É diretor da Som Norte, em Gaia, que desde 1991 se dedica a transformar vozes estrangeiras e a dar voz aos desenhos animados. O negócio não é fácil e, em 24 anos, muita coisa mudou na indústria das dobragens. A tecnologia e as restrições financeiras criaram obstáculos difíceis de contornar.

Se há 20 anos estavam envolvidos cerca de seis produtores na gravação de uma série, atualmente esse trabalho fica a cargo de uma ou duas pessoas. Ainda assim, a era digital veio melhorar a qualidade técnica dos conteúdos. “Só para repetir um take demorava-se quase um minuto, hoje em dia é instantâneo”, diz Paupério.

No último ano de 2015, a Som Norte dobrou quatro filmes e oito séries, números esse que, segundo o diretor, “se mantêm estagnados já há três anos”. A questão cultural influencia, bem como o dinheiro para investir. “Hoje em dia se me propusessem abrir um estúdio, pensaria duas vezes e o mais certo era não o fazer”, confessa Jorge. Os preços praticados continuam a garantir trabalhos, mas por vezes não é o suficiente. “Já nos aconteceu fazer em dois anos os filmes mais vistos e, no ano seguinte, praticamente não trabalhamos”, conta.

Uma questão cultural?

Um dos argumentos utilizados contra as dobragens é o de que retiram qualidade ao filme. As vozes originais dão o cunho à história, ao seu desenrolar e à forma como cada espetador interpreta o resultado. Jorge Paupério defende o trabalho e acrescenta até que esta crítica é algo tipicamente português, “o de ligar muito à voz do ator”. Para o próprio, a dobragem “acaba por ser melhor que a interpretação original”.

“Um espectador de um filme legendado perde muito tempo a ler, e com essa concentração acaba por perder a imagem que está à volta”, refere o diretor da Som Norte. “Em quase todo o mundo o cinema é para ser visto, em Portugal o cinema é lido”, remata.

Nas vizinhas Espanha e França as dobragens são características. Em Portugal, os conteúdos que sofrem esse processo são quase exclusivamente os filmes ou séries para crianças. Para Jorge Paupério esta “tradição” vem já do tempo do Estado Novo, em que se optava pela legendagem porque “se decidiu que a dobragem era perniciosa e que poderia ser revolucionária”. Em Espanha a estratégia era inversa. “Franco resolveu dobrar tudo porque achava que era uma forma de controlar a linguagem”, conta.

Com o sucesso do Rei Leão em 1994, a aposta na dobragem de filmes infantis aumentou. Em relação ao cinema em geral, Jorge diz que “não há uma aposta, e sempre que se aposta, é feito de uma forma envergonhada”. Dá o exemplo do filme francês Intouchables – em português Amigos Improváveis –, que passou dobrado numa só sessão e “ninguém sabia que o filme estava dobrado, pois não foi feita qualquer promoção”.

O facto das telenovelas terem um enorme sucesso em Portugal, segundo o diretor da Som Norte, prende-se também por ser um produto português, em que as pessoas não precisam de estar presas à televisão, que “ligam e vão vendo enquanto fazer as suas coisas”. Jorge Paupério arrisca dizer que o decréscima de público nos cinemas, salvo fenómenos como as 50 Sombras de Grey ou o Pátio das Cantigas, além dos preços elevados nas bilheteiras, advém do facto do cinema estar legendado.

Das muitas personagens a que deu voz, uma das últimas foi no filme Os Croods, que esteve nomeado na categoria de melhor filme de animação nos Óscares 2014, onde fez o papel de Grug (ver vídeo). A Som Norte foi responsável pela dobragem de êxitos de bilheteira como Rio e Epic, ou de séries como Completamente Selvagens e Dawson’s Creek.