Antes de mais, vou começar por fazer aquilo que muitos críticos nos EUA e em Portugal não têm feito e que deviam: sou católico, não praticante, e muitas vezes me questionei sobre se sou mais ateu do que cristão.
Acreditem, numa crítica a “A Paixão de Cristo”, é preciso fazê-lo, para que não restem dúvidas da imparcialidade da minha leitura, num filme que tem sido promovido mais como obra doutrinária do que como uma obra cinematográfica. Agora sim podemos falar.

O que é afinal esse filme de que todos falam? Uma obsessão violenta? Uma incursão de Gibson no cinema “gore”? Um filme de um católico ultra-conservador? Uma obra anti-semita? Vamos por partes.

1. Sim, é violento. Não, não é excessivamente violento. A violência em “A Paixão de Cristo” é uma violência justificada. É certo que chega a impressionar mais do que noutro qualquer filme. Só que noutro qualquer filme, não é a figura de Cristo que vemos a ser alvo de violência. São pessoas anónimas, ora bons ora maus da fita, com as quais nos identificamos ou não. A violência tem em “A Paixão de Cristo” um objectivo. E, a meu ver, ele é a criação de um realismo visual e sonoro. Para esse efeito contribuem também a fotografia (seguramente o melhor do filme) e o facto do filme ser totalmente falado em aramaico e em latim.

2. Todos os filmes sobre a vida de Cristo têm sido acusados de anti-semitismo. Com o filme de Mel Gibson, as acusações foram mais violentas e começaram logo quando ele anunciou que ia fazer um filme sobre as últimas doze horas de Jesus Cristo. Não acho que o filme promova o anti-semitismo. Os judeus são acusados da mesma forma que os romanos. A culpa é mostrada como sendo de todos. De todos nós. De qualquer um de nós. Mas há em “A Paixão de Cristo” uma personagem que levanta dúvidas. A de Pilatos, que é apresentada com uma figura apaziguadora e até benevolente, apesar de os teólogos se referirem a ele como inflexível e impiedoso.

3. Mas que obra cinematográfica é “A Paixão de Cristo”? O facto de não deixar ninguém indiferente não quer dizer que estamos perante uma obra-prima. Aliás, não é de todo o melhor filme sobre a vida de Cristo. Aquilo que acrescenta é o facto de explorar um realismo baseado na violência e de apresentar um Messias que não é loiro e de olhos azuis. E pouco mais. Jim Cazievel representa um Jesus Cristo sem um qualquer conflito interior, que pouco se interroga, ao contrário da interpretação de William Dafoe em “A Última Tentação de Cristo”, de Scorsese.

4. Esta última tentação de Mel Gibson, que já não realizava desde “Braveheart”, mostra como o actor australiano ainda não é nenhum Clint Eastwood. Mel Gibson realizou apenas mais um filme sobre Cristo.

Daniel Vaz

FOTO: www.smh.com.au