“Um homem insatisfeito em busca da perfeição”, foi assim que Erica Aguiar, comissária executiva da exposição, definiu o génio de Edgar Cardoso.
Considerado um dos maiores engenheiros portugueses do século XX, grande parte das pessoas que conheceram Edgar Cardoso lembram-no como um homem de grande tenacidade e capacidade inventiva. Com um espírito aberto, o “engenheiro das pontes”, como ficou conhecido, procurou sempre a inovação, tentando ultrapassar tudo aquilo que já estava feito. “Eu não faço uma ponte igual à outra”, dizia, “porque cada obra é um momento de inovação e de busca de novas soluções mais racionais e económicas”.
Uma das características mais marcantes da sua obra é talvez a recusa das soluções padrão, fáceis e já testadas. Edgar Cardoso procurava sobretudo a inovação, chegando a inventar ou a adaptar aparelhos e objectos para fabricar os modelos reduzidos com que trabalhava. Ele próprio afirmava: “o que não faço com a cabeça faço com as mãos”.
A exposição “Edgar Cardoso, Mecanismos do Génio” reflecte bem a paixão deste homem pela Engenharia.

Erica Aguiar referiu ao JornalismoPortoNet que o principal objectivo da exposição é divulgar a vida e obra de Edgar Cardoso, pondo em destaque a extraordinária capacidade inventiva do engenheiro.
Manuel Matos Fernandes, comissário da exposição e professor na Faculdade de Engenharia do Porto, esclarece que esta exposição resulta de um protocolo estabelecido entre três entidades: a própria faculdade de Engenharia, o Museu dos Transportes e o Gabinete Edgar Cardoso-Engenharia, Ltd. De acordo com Matos Fernandes, a ideia de prestar homenagem a Edgar Cardoso surgiu ainda em vida do engenheiro, mas “só agora foi possível concretizar”. Inicialmente, “a ideia era fazer a exposição na faculdade de Engenharia”, adianta o professor, mas “chegou-se à conclusão de que não havia um espaço próprio para isso”.

À descoberta dos “mecanismos do génio”

A antiga Sala dos Despachantes da Alfândega foi o local eleito para acolher a exposição. O arquitecto Eduardo Souto de Moura ficou responsável pelo projecto de arquitectura e o resultado traduz-se num interessante aproveitamento de uma área de cerca de 500 m2.
O JornalismoPortoNet foi até ao Museu dos Transportes e Comunicações descobrir as “engenhocas” de Edgar Cardoso.

Colocada no átrio de entrada, uma grande maqueta da Ponte da Arrábida faz as honras da casa. A exposição continua à direita. À entrada da sala, um painel gigante tem inscrita uma das frases que melhor ilustra o percurso profissional do autor da Ponte da Arrábida: “Em todos os rios há um sítio que foi feito para pôr uma ponte. É preciso encontrá-lo”. De facto, um dos princípios que sempre norteou os projectos de Edgar Cardoso foi precisamente a preocupação de integrar a obra concebida na paisagem envolvente. Para além da ponte da Arrábida e de S. João no Porto, são igualmente bons exemplos desse empenho a ponte da Foz do rio Sousa, a ponte sobre o rio Douro em Mosteirô ou a ponte Nobre de Carvalho em Macau. “Chegou a Macau e fez uma ponte chinesa” que “lembra um dragão”. Matos Fernandes resume assim a preocupação que Edgar Cardoso tinha em inserir cada obra na área envolvente. “Não havia repetição, havia uma constante exigência de inovação”, e “em cada local havia uma inspiração”, explica o professor e comissário do evento.

A exposição desenrola-se em torno de uma estrutura em madeira, um espaço concebido por Souto Moura para abrigar uma recriação do local de trabalho do engenheiro. Por fora, essa estrutura está envolta por grandes painéis, onde desfilam, numa organização cronológica, fotografias e textos acerca da vida e obra de Edgar Cardoso. Para além dos painéis, é ainda possível contemplar algumas maquetas e modelos em acrílico, dispostos ao longo da sala. Para a zona central, o arquitecto Souto Moura concebeu um ambiente em que é reconstituído o gabinete de trabalho do engenheiro. Para além da recriação do escritório, com os móveis de origem e objectos pessoais, e do atelier equipado com estiradores, há ainda uma sala cheia da maquinaria que Edgar Cardoso utilizava para criar as suas “engenhocas”.

O “criador de engenhocas”

Era com essas máquinas que Edgar Cardoso fabricava os modelos e alguns dos aparelhos que inventava para fazer cálculos e medições. Entre esses aparelhos conta-se um que permite medir a deformação provocada numa pedra quando alguém faz pressão sobre os dois lados. Edgar Cardoso chamou-lhe “extensómetro eléctrico”. No entanto, a mais emblemática dessas invenções é, sem dúvida, a máquina fotográfica rotativa. Revolucionária, esta invenção foi apresentada à Academia das Ciências em 1973, tendo sido patenteada nos Estados Unidos da América. A máquina foi construída com base no motor de um limpa pára-brisas de um velho Volkswagen “carocha”, e permite tirar fotografias panorâmicas sem distorção e em qualquer ângulo. Recordando estas invenções, Matos Fernandes conclui que Edgar Cardoso foi “um engenheiro na verdadeira acepção da palavra”.

“120 anos de carreira”

Nascido no Porto a 11 de Maio de 1913, Edgar Cardoso licenciou-se em Engenharia Civil na Faculdade de Engenharia em 1937. São-lhe reconhecidas as facetas de engenheiro, professor e inventor, mas foi como projectista de pontes que ganhou notoriedade.

“Teve uma vida profissional extensa, no mínimo 55 anos”, lembra o professor Matos Fernandes. “Trabalhava entre 12 a 14 horas por dia e até brincava, dizendo que já tinha 120 anos de carreira!”. Da enorme capacidade de trabalho de Edgar Cardoso resultou um vasto conjunto de intervenções. Foi autor de cerca de 500 estudos e projectos, não só em Portugal como em Angola, Brasil, Macau, China, Moçambique, Timor, Guiné, Venezuela ou na antiga Índia portuguesa.

Uma enorme sensibilidade estética

Para o professor Matos Fernandes, as obras de Edgar Cardoso revelam um “grande apuro técnico e estético” e “provocam no observador a impressão de beleza, elegância e harmonia”.
Exemplos disso são as pontes da Arrábida e de S. João, duas das obras mais emblemáticas deixadas pelo engenheiro à cidade do Porto. Testemunhos do talento e arrojo de Edgar Cardoso, para Matos Fernandes estas pontes “são ícones da cidade” e “são obras que vão marcar um tempo”. Paradoxalmente, ambas foram intervenções polémicas e recordes mundiais da Engenharia Civil . Na memória ficam histórias e episódios muito peculiares.
A Ponte da Arrábida, projectada em 1958, foi um recorde mundial na altura. Ninguém acreditava que fosse possível fechar o maior arco de betão armado do mundo, com um vão de 270 metros. No dia em que o arco ir ser concluído, muitos foram aqueles que se deslocaram até ao local para ver a estrutura cair. O certo é que a ponte está de pé até hoje, e é considerada uma das mais belas obras de Edgar Cardoso.

Para lá de um profundo conhecimento técnico, a obra de Edgar Cardoso reflecte também uma enorme intuição aliada à experiência. A ponte ferroviária de S. João é disso um exemplo peculiar. É que os pilares desta ponte foram pensados a partir do trabalho feito numa cenoura. Embora possa parecer estranho para quem desconhece os métodos experimentais utilizados por Edgar Cardoso, foi exactamente desta forma que a estrutura dos pilares foi idealizada, a partir de uma “cenoura trabalhada a canivete”. Edgar Cardoso tinha um “grande conhecimento dos materiais com que trabalhava”, salienta Matos Fernandes, e por isso calculava o comportamento das estruturas em materiais inesperados, como uma cenoura.

Para além das inovações técnicas, as pontes da Arrábida e de S. João ficam na história ainda pelo desdenho e críticas que suscitaram nas respectivas alturas. Ciente da importância do seu trabalho, Edgar Cardoso afirmava: “toda a invenção, toda a inovação, é uma ruptura contra os regulamentos”.

“Mau génio” ou apenas “genial”?

Para uns, um homem de feitio difícil e intempestivo, por vezes arrogante. Para outros, essa seria talvez a única forma de fazer frente a invejas e ao conservadorismo com que sempre se deparou.
Mas Edgar Cardoso foi sobretudo um homem que esteve à frente do seu tempo, tornando-se por isso mesmo alvo fácil da incompreensão de muitos. “Eu inovei em todas as obras e, por isso, nunca fui compreendido”, afirmava. O arrojo e inovação dos seus projectos nem sempre foram bem aceites, mas Edgar Cardoso defendeu sempre aquilo em que acreditava. Matos Fernandes caracteriza-o como uma “pessoa muito combativa, que em certas situações podia ser truculento e frontal”, por vezes agressivo nas palavras. Acima de tudo era um homem “genial, engenhoso e apaixonado pelo trabalho”, sublinha o professor Matos Fernandes.

De personalidade forte, foi muitas vezes um homem polémico. Envolveu-se em vários conflitos, nomeadamente com o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) quando, em diversas ocasiões, pôs em causa a competência dos seus técnicos.

Edgar Cardoso veio a falecer em Julho de 2000, tendo deixado aquilo que Manuel Matos Fernandes considera “um património de enorme valor e que perdurará por muitas gerações”.

A exposição, patente até 31 de Agosto, tem o mérito de oferecer ao público a oportunidade de conhecer melhor o percurso profissional e pessoal de Edgar Cardoso, elementos fundamentais para uma melhor compreensão da obra deixada pelo “engenheiro das pontes”.

Ana Correia Costa (texto e fotos)