“O maior celerado, um cão raivoso, um irado, um herético, um porco de Epicuro que fecha os ouvidos a todas as emendas cristãs”, assim é D. Juan aos olhos do criado Esganarelo. Esganarelo é um servo submisso e conformado com a vida, D. Juan um ateu, um sedutor, um desesperado.

A partir de sexta-feira, “D. Juan ou o Festim de Pedra” de Molière vai estar em exibição durante um mês na Academia Contemporânea do Espectáculo (ACE). D. Juan, uma fonte inesgotável de criação artística, é uma produção da ACE/Teatro do Bolhão, encenada pelo japonês Kuniaki Ida, pela segunda vez a trabalhar com a companhia.

A peça enquadra-se numa estratégia da ACE/Teatro do Bolhão de criar espectáculos com base em textos e autores nucleares da dramaturgia universal. Até agora, a ACE levou ao palco “A Resistível Ascenção de Arturo Ui” de Bertolt Brecht, a “Pioravante Marche” de Samuel Beckett e “Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?” de Edward Albee. A companhia pretende ainda encenar “D.Quixote” e “Oresteia” brevemente.

Um sedutor endiabrado

O mítico personagem D. Juan, interpretado por António Capelo, veste de vermelho da cabeça aos pés. Num cenário luxuriante saturado de veludos rubros, Capelo mantém uma pose e uma voz altivas, suportado pela segurança de João Paulo Costa no papel de Esganarelo. Nas duas personagens reconhece-se Molière: um cínico ou um inconformado, um rebelde ou um crente.

Molière escreveu o texto numa altura em que lhe morre o filho e o pai, a actriz da companhia abandona-o e o rei deixa de o financiar. A angústia percorre-o quando escreve e a peça é um auto-retrato cheio de carências físicas e afectivas.

Considerado pelo criado como “o coração mais femeeiro do mundo”, D. Juan justifica-se: “o amor que sinto por uma não me leva a ser injusto com as outras”. Porém, a história não se limita a retratar as aventuras amorosas de um libertino ímpio. “Esta peça é muito filosófica e metafísica. Fala sobre a vida, o amor, a liberdade. D. Juan é um indivíduo cínico e autónomo que quer preservar a sua liberdade individual contra tudo o que há à sua volta. Por isso, [a peça] é actual”, descreveu ao JPN o encenador Kuniaki Ida.

O texto de Molière foi rotulado como subversivo pelos seus contemporâneos, uma “comédia muito perniciosa já que não só representa os vícios mais horríveis, como também ensina a cometê-los”. Por isso, “D. Juan é uma espécie de herói em conflito com este mundo. Já habita o Inferno: só perante a morte encontrará a paz”, conclui o encenador.

Carina Branco