Fale-me um pouco da sua relação com a poesia japonesa.

Longa e profunda. Tinha vinte anos, tinha partido do país para fugir à guerra colonial e encontrava-me num colégio inglês, a fazer um curso de Verão. Havia publicado dois livros, que um dos nossos grandes críticos considerou inspirados, mas que bebiam em poetas torrenciais: e bebiam. O louvor agradou-me, mas pouco depois enervou-me, eu queria encontrar o meu próprio caminho. Ser mais claro, sentir-me mais próximo da fonte, do enigma. E então não é que nesse tal colégio fui colocado no quarto de um professor em férias de poesia oriental? Uma estante cheia de uma poesia que eu não conhecia! Japonesa e chinesa! Comecei a traduzir com a ajuda de uma japonesa, que também estava nesse curso – éramos jovens de 50 ou 60 países —, e isso transformou-me e à minha poesia: conheci uma poética que hoje considero a mais bela de todos os tempos (comparável só às nossas “cantigas d’amigo”), entrei num campo de trabalho como eu gosto, a longo prazo, para sempre; entrei na vida (física, mental, sensível) de um ser celestial, a minha amiga japonesa, enfim, coisas bonitas que mudaram o meu caminho. Nunca mais deixei de respirar essa poesia e, sobretudo, nunca mais deixei de pensar (e de fazer) que é preciso conhecer mais do que a nossa tradição poética…

Escreveu 14 poemas para a exposição de escultura de Kisako Umino, inaugurada em 2 de abril de 2005 em Paris. Como surgiu essa colaboração? O que é que os seus poemas acrescentam à obra de Umino?

Conheci a Kisako quando fui ao Japão, há dois anos. Uma viagem maravilhosa de 13 horas, porque o destino nos colocou lado a lado e encontrámos coisas comuns relacionadas com a arte, com a Natureza, com a vida enquanto tragédia, mas, curiosamente e para ambos, esse sentido trágico da vida era luminoso. O ano passado fui ler poesia a Itália e ela foi visitar-me, e eu próprio a tinha convidado para vir a Portugal, passar uns dias numa Casa do Artista, mas não sei porquê quase não pude estar com ela, ia não sei para que viagem… Quando estive no seu atelier, em Florença, foi o fascínio: ela fazia coisas, “animais da terra”, que se pareciam com os meus poemas… bichos enigmáticos! Entretanto, uma galeria de Paris convidou 14 artistas para exporem cerâmicas: 7 japoneses instalados no estrangeiro, 7 estrangeiros instalados no Japão. E a Kisako pediu-me um haiku para uma das suas esculturas. Adorei e nessa mesma noite escrevi… 14! Uma maravilha que depois continuou, como? No dia seguinte telefono à minha tradutora francesa, Catherine Dumas, que, generosa como sempre, e apesar de se estar a preparar para uma viagem, os traduziu todos de imediato. No terceiro dia mostro-os a Ana Hatherly, que de imediato os traduziu para inglês. E no quarto dia mando-os para o poeta japonês com quem trabalho na tradução de poesia japonesa, que, também de imediato, os traduziu para japonês. E que me disse que queria publicá-los, nas 4 línguas, numa das mais relevantes revistas japonesas de haiku. Já foram. Enfim, tudo isto aconteceu como acontece um haiku: quando menos se espera… uma aparição… um enigma! E lá fui a Paris ler os poemas e passear com a Kisako sob as pontes do Sena.

Andreia C. Faria

Imagem: PEN CLube Português