É presidente do PEN Clube Português, há anos que está na vanguarda da literatura portuguesa e venceu, recentemente, o Prémio de Poesia Aleramo-Mário Luzi para “Melhor livro de poesia estrangeira publicado em Itália”, com o “Libro delle Cadute”. Em entrevista ao JPN, Casimiro de Brito fala do galardão, do “livro da sua vida” e do seu modo de estar enquanto escritor. Salvaguardada a certeza de que, após 40 obras publicadas, o melhor de si ainda está para vir.

“O Livro das Quedas será o meu último livro”

Qual é para si a importância do Prémio de Poesia Aleramo-Mário Luzi?

Trata-se de um “Prémio Europeu de Poesia” de extrema importância e que muito me honra. Porque está ligado ao nome de um dos poetas italianos que mais admiro, Mário Luzi, recentemente falecido, mas que tive o privilégio de conhecer pessoalmente. Depois porque foi atribuído por um júri de elevada qualidade, e quem acompanha o que se passa em Itália sabe que este país tem a poesia em alta conta, sendo o país do mundo onde há mais festivais de poesia. Terceiro, porque o prémio se insere num enorme Festival Europeu, sob o tema “A Nostalgia, Ulisses e o desejo do Retorno” (questões que me são gratas e objecto de muitos dos meus textos), festival esse que se alastra por quase cinco meses de intensa actividade cultural: a primeira sessão foi em 2 de Junho e a última será em 12 de Outubro. Dou-lhe um exemplo: a sessão em que o prémio me será entregue vai ser em 9 de Julho e nessa noite vai dar um concerto um dos mais prestigiados conjuntos da nossa música: os Madredeus! “Saudade, Um amor infinito”, o título do concerto deles.

Como era a sua relação com o poeta Mário Luzi?

Foi num Congresso Mundial de Poetas, de boa memória. Em Florença, onde Luzi sempre viveu. Lá encontrei (mas não só em Florença, claro) poetas relevantes, como Joseph Brodsky, Guillevic, Léopold Sedar Senghor, Czeslaw Milosz, Jorge Luis Borges, Rafael Alberti, tutti quanti. E o Eugénio, que faleceu há dias, se é que os poetas, quando o são, morrem. Luzi, nesse caso, era uma espécie de anfitrião, natural que é dessa cidade que não me canso de visitar, e onde recentemente estive para ver “A Expulsão do Paraíso”, de Masaccio, finalmente exposto ao público na delicada Capela Brancacci, e para vagabundear nos campos da Toscânia com Kisako, a escultora japonesa que conheci quando fui ao Japão ver os templos, os santuários.

Explique-me o conceito de Livro das Quedas e o porquê de ser editado também em italiano.

“Libro delle Cadute” é o título da antologia publicada em Itália do meu Livro das Quedas, que acaba de ser editado em Portugal. O Livro das Quedas será o meu último livro, não escreverei outro viva eu 20 dias ou 20 meses ou 20 anos. É uma obra aberta, de certo modo labiríntica e enciclopédica, onde caberá tudo, no sentido em que coube tudo nos “Cantos” do Ezra Pound ou na Invenção de Orfeu, do Jorge de Lima ou na obra do Walt Whitman. Comecei a escrever esse livro há 9 anos e 14 dias, no dia do nascimento da minha filha mais nova, a Diana. E mais ou menos na altura em que morreu um amigo meu: por esses dias pensei que o meu amigo morria com um sorriso de pacificação, mas também que não sabia que espécie de mundo a minha filha vinha encontrar. Era portanto necessário repensar toda a minha obra poética, iniciada há 40 anos, sob o espírito da tapeçaria, uma espécie de visão horizontal da vida. Agora seria vertical, poria em prática poética conceitos que vinha desenvolvendo, influenciado que tenho sido por tradições as mais diversas. Cada poema seria o último: doloroso ou feliz, mas sempre compassivo e pacífico.

Escreve como se cada poema fosse o último. É a fórmula para que o poeta não se angustie na busca da palavra certa, mas se sinta feliz nela?

Para mim foi, é. Durante dezenas de anos, desde a adolescência, eu sabia que ia escrever a vida inteira, e que desejava tocar na luz e em todas as feridas da natureza humana. Era um projecto dilacerante, porque, tendo ideias claras sobre o que queria fazer, escrever (a tal tapeçaria mental onde eu inscreveria as minhas obsessões), nunca teria um fim, quero dizer, um repouso. Isto apesar de eu me ter deixado envolver por coisas, sobretudo orientais, em que a paz e o repouso e o vazio eram uma espécie de lei… de certo modo alcançada. Mas nunca em poesia. E subitamente a verdadeira iluminação, essa que veio justificar a minha ideia, de toda a vida, de que “a morte não existe”: não é só a vida que é aqui e agora, e só, e mais nada, mas também a poesia, a minha poesia, e então comecei a viver com a ideia que… “a minha obra está feita” tal como “o meu corpo está feito”. Isso deu-me uma grande paz, mas, atenção, esta paz não é uma coisa fácil, porque ela é construída sobre o sofrimento próprio do ser humano nas suas várias componentes, o seu passado antes do corpo, o seu próprio corpo e os outros, sejam eles homens ou não, seja a mulher que busco ou outra coisa, seja o sofrimento próprio da tragédia de existir ou outras dores mais concretas… Mas o poema está feito, o corpo também, e tudo vai bem. Talvez o amor não esteja ainda feito!

Quando diz que Livro das Quedas é o último livro da sua vida quer dizer que de momento não está a trabalhar em mais nada? É, por ser o último, o livro da sua vida?

O meu último livro de poesia é o Livro das Quedas (a ser publicado todo agora teria 700 páginas, mas acabo de editar apenas os primeiros 125 fragmentos), de que resultou a antologia italiana, havendo outras em tradução para outras línguas. Acontece, no entanto, que paralelamente há outros Livros, que vêm de trás. Escrevo haiku há quase 50 anos (comecei em 1958) e os 1.500 poemas existentes vão ser reunidos sob o título Livro dos Haiku. Existem milhares de fragmentos e aforismos, género da minha obsessão, que vão sendo reunidos em vários livros. Tudo isso vem de trás, como disse: uma espécie de “fundo” donde vou retirando materiais para livros novos na área da escrita fragmentária. E neste momento estou a trabalhar furiosamente num livro que se intitulará “O Sexo e o Canto”. Mas a poesia que for surgindo, e cada poema será sentido como se fosse o último, vai toda para o Livro das Quedas.

Qual é o potencial de um aforismo? Tem a força de um slogan publicitário? É isso que o fascina no aforismo?

Bom, a comparação não é famosa, só se comparam por seres ambos breves. O slogan publicitário baseia-se numa verdade relativa (ou numa mentira relativa) e passado o efeito morre e joga-se para o lixo. O aforismo, igualmente breve, tem a forma de um ovo donde pode nascer um pássaro. É um texto mínimo que, começando por surpreender, vai transformar-se em coisa do outro, do leitor, uma vez que a sua estrutura enigmática se presta à interpretação. Deve ser perfeito como o tal ovo ou uma pedra: não há nele uma sílaba a mais, mas tudo o que lá está é muito mais. A única comparação possível é com a forma mais bela de poema que existe: o haiku! Vou transcrever um texto, tirado de um dos meus livros de aforismos, Da Frágil Sabedoria: “O aforismo é um quase silêncio; uma pegada de gaivota na areia da manhã”. Ainda mais dois, estes do livro que acabei recentemente, Fragmentos de Babel: “As metáforas — e também os aforismos— vêm pelo caminho impalpável da serpente e trazem, inesperadas, a substância mais consistente do inconsciente”. Ou este: “Quantas veredas obscuras para encontrar um ponto luminoso onde o silêncio arda? Tal como um ovo — ou um calhau polido por mil estações — o aforismo acontece. A teia interior, a letra interrompida pelos ruídos da cidade, e com eles ao fundo retomada. E completada por quem a lê, ora iluminando-a, ora despenteando-a. O direito do leitor igual ao do escritor.

Andreia C. Faria

Imagem: PEN CLube Português