Na iminência da sua detenção a enfermeira Fay afirma que “a lei é imparcial”. “Mas quem é que lhe encheu a cabeça com esses disparates?”, questiona o inspector Truscott, o perspicaz agente da lei. A sala explode numa gargalhada sonora, dando alma a esta produção do Teatro Nacional S. João (TNSJ).

É neste ambiente que “O Saque” cresce, a par e passo. Uma comédia negra com uma crítica de costumes à boa maneira vicentina. Os risos surgem quando os nossos maiores defeitos são postos ao ridículo de uma maneira tão natural.

“O Saque” de Joe Orton abusa do humor negro, o ex-líbris da cultura britânica. O cenário é a morte da senhora McLeavy. O caixão em que a falecida tenta repousar torna-se o centro da peça, a partir do momento em que o seu filho Hal e o amigo (e amante) Dennis escondem nele o dinheiro do assalto a um banco. O resto é um retrato do pior de cada pessoa, com uma leve pitada de absurdo e imoralidade – o conjunto perfeito para uma noite bem passada.

Todos sabemos que o texto irreverente de Joe Orton é um brilhante exemplo da boa comédia negra britânica. No entanto, será possível ter a mesma cadência humorística e rítmica na língua portuguesa? Ricardo Pais estava ciente disso (chegou a confessar que era um dos seus maiores medos). Assim, em boa hora, deu carta branca a Luísa Costa Gomes, com quem já tinha trabalhado em “UBUs”, para fazer a tradução das palavras de Orton.

A terceira vez no Porto

Depois de uma passagem por cenários italianos, “O Saque” regressa ao Porto. É a terceira reposição da peça na cidade Invicta. Agora no Teatro Carlos Alberto, “O Saque” vai estar em cena de 29 de Fevereiro a 9 de Março.

Apesar do recurso a algumas piadas fáceis, a tradução está exímia, não se limitando ao mero papel de reprodução de um texto que tinha, obrigatoriamente, de ser construído. Árdua tarefa, que foi vencida com uns toques de sensualidade e surrealismo.

O TNSJ provou mais uma vez a qualidade dos seus actores, com os repetentes Pedro Almendra, Paulo Freixinho, Jorge Mota e Lígia Roque a brilharem. No entanto, as pancadas de Moliére foram mais fortes com a entrada em cena de José Eduardo Silva no papel de inspector Truscott. Um polícia corrupto disfarçado de homem do saneamento provoca o riso, se for interpretado com inteligência.

Se houve inovação no tratamento do texto e no recurso a certos meios audiovisuais (como os microfones no chão do palco, que davam uma estranha sensação de profundidade), os cenários poderiam ter sido melhor escolhidos. Para um S.João que já albergou o sumptuoso espaço de “A Castro”, Pedro Tudela poderia ter arriscado mais.

Numa peça que brilha pelo texto, a noite é de Joe Orton. O próprio cartaz publicitário o testemunha: é o texto que chama o espectador, não a imagem. “O Saque” dos bons costumes é feito e concluí-se aquilo que Orton já afirmava: “as pessoas são profundamente más, mas infinitamente cómicas.”