Com uma média de 17 valores, Daniel Serrão formou-se em Medicina em 1951, com o intuito de ajudar os outros, mas foi ao ensino que dedicou a maior parte do seu tempo. Professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e jubilado em 1998, é actualmente professor dos cursos de Mestrado do Instituto de Bioética e da Faculdade de Filosofia, da Universidade Católica Portuguesa.

Quando é que descobriu o gosto pelo ensino?

Comecei muito cedo. Nós tínhamos dificuldades financeiras. O meu pai tinha um emprego público, mas ganhávamos mal. Éramos três filhos, a minha mãe não trabalhava. Comecei a dar explicações ao quinto ano, para ganhar dinheiro. Depois descobri que tinha jeito para ensinar, para comunicar aos outros. Tirei o curso de Medicina com a convicção que ia fazer clínica e acabei a ensinar alunos. E isso nunca mais desapareceu. Aliás, aquilo que mais me custou foi quando fiz 70 anos e a lei entendeu que não devia continuar a ensinar os alunos. Mas eu tinha criado um mestrado de Bioética na Faculdade de Medicina, de maneira que no mesmo ano que me aposentei, voltei a dar aulas. Aposentei-me em Março e em Outubro estava a dar aulas a médicos e enfermeiros, de pós-graduação. E agora tenho feito muito ensino de pós-graduação, em muitos sítios, no país e fora dele. Gosto de comunicar às pessoas aquilo que acho que sei.

Os jovens alunos hoje encaram a Medicina de um modo diferente do seu tempo de estudante?

Sim, encaram. Hoje em dia vão muito para Medicina jovens com vocação para a investigação científica. Acham que, mais até do que a biologia, a medicina é o sítio onde eles podem desenvolver essa vocação. O serviço dos outros é o essencial em Medicina, mas, se calhar, hoje é procurado só por uma minoria. Deve ser por isso que nós temos mais especialistas técnicos formidáveis em muita coisa e poucos médicos de família ou médicos que atendam os doentes.

Sempre defendeu valores éticos na sua profissão. Os jovens de médicos de hoje têm esses valores presentes?

Muitos têm. Não estamos a criar uma geração de médicos desumanizados. A medicina que se pratica em Portugal é ainda muito humanizada, com capacidade técnica, naturalmente. Os nossos melhores cirurgiões fazem exactamente o mesmo que os melhores cirurgiões dos Estados Unidos. Os meus diagnósticos não eram inferiores aos de nenhum patologista em qualquer sítio do mundo.

Participei nas actividades da Academia Internacional de Patologia, da Sociedade Europeia de Patologia e nunca verifiquei que os patologistas portugueses tivessem atrasados e menos competentes que os outros. Do ponto de vista científico é indiscutível.

Do ponto de vista da relação médico-doente, precisamos de facto de melhorar muito. Aí a culpa é, em grande parte, da Universidade, que não lhes transmite esse sentido de serviço. Os alunos são formados num hospital, aprendem a ver doentes deitados numa cama. 80% dos doentes que vão ao médico vão pelo seu pé. Esse tipo de clínica está menos desenvolvido entre nós.

O que acha das séries televisivas ligadas à medicina? Até que ponto podem influenciar os jovens?

Como entretenimento não tem problema nenhum. Mas faz passar uma imagem errada às pessoas. Aquilo às vezes não é nada assim. Quem está dentro da profissão, ri-se. Aquilo é o espectáculo. Eu sou contra transformar as actividades humanas em espectáculo. Hoje tudo tem que ser espectacular. Se não for espectacular não vale, não passa, não interessa. Acabando o espectáculo ficamos vazios.

Hoje, o pós-modernismo acha que a pessoa só se realiza pela componente espectacular. A televisão representa um regresso na evolução humana. A comunicação oral é sujeita a manipulação, a erros, está sujeita a tudo. Os jovens ficam encantados com aquilo, mas depois apanham uma desilusão. Dá impressão que não é preciso estudar, que já nascem ensinados, que se pode fazer tudo o que vier à cabeça das pessoas. Eu espero que os professores tenham alguma paciência para ver alguns filmes e comentar aos alunos. Uma das coisas boas seria projectar um filme numa aula de clínica médica e falar sobre ele. Esses filmes não são nada benéficos para a formação da vocação, para ajudar a pessoa a encontrar uma vocação.

“Inteligência humana é potenciada pela informática”

As novas tecnologias têm trazido mais vantagens ou mais desvantagens à medicina?

Todas as tecnologias são, em princípio, boas. O uso é que pode não ser o correcto. O ensino nas faculdades de Medicina já devia ser todo por meios informáticos. E o sistema profissional também. Actualmente a inteligência humana é potenciada pela informática. Não é um mal, é um bem, é um bem extraordinário, até é um bem excessivo. Se quiser saber a doença mais esquisita, num instante descubro.

Um professor a ensinar numa aula não passa de um ser humano ridículo. Ele está a usar uma metodologia de investigação que não serve, hoje. Ele esquece-se das coisas, ou engana-se e troca tudo, diz uma dose e não é aquela, é outra… Nós devíamos informatizar todo o ensino. Uma coisa hoje é a informação, que está disponível em todo lado, e outra coisa é a aprendizagem pelo contacto pessoal. O problema depois é os alunos arranjarem tempo. Na aula, tomam nota à pressa e depois não conseguem ler o que escreveram. Não serve para nada.

Tendo em conta que viveu numa era anterior ao computador, como foi a sua adaptação?

É uma era nova, é um paradigma novo. Não só na aprendizagem como no exercício da profissão. Um médico bom tinha um olho clínico: “Você tem tuberculose!”. Isso agora acabou. Um médico nunca pode dizer “Eu acho, eu penso, eu julgo”. Nem acha, nem pensa, nem julga, comprova. É evidente, há provas, há sinais, está seguro. É assim. O paradigma do exercício da profissão já mudou em muitos países, Portugal ainda está atrasado, porque ainda não se conseguiu fazer a informatização. E o ensino também está atrasado, está atrasado há 10 anos.