Uma viagem de inverno através de um espaço não existente serve de mote para a reflexão acerca da criação teatral, em “Nenhures”, em cena no Teatro Carlos Alberto (TeCA) a partir desta quinta-feira. A peça, levada à cena pelo Teatro Bruto, é da autoria do poeta portuense Daniel Jonas.

Tristão, depois de uma desilusão amorosa, “empreende uma viagem de sentimentos e melancolia” e influencia todos os outros personagens. Tudo isto num lugar não existente “que permite qualquer situação”, explica Daniel Jonas. A peça foi escrita a partir de algumas ideias dos membros da companhia acerca da metamorfose e da “troca de personalidades”, que o autor canalizou para a ideia de “duplos e alter egos constantes”.

“Cruzamento de linguagens”

“Não é uma história, mas um acto de encontro”, afirma a encenadora Ana Luena, em que “os próprios actores criam o espaço e fazem assumidamente vários papéis.” Daniel Jonas, por seu lado, considera que a peça “é um atentado à ideia de teatro”. É uma construção “sensorial” que dá espaço ao cruzamento de linguagens, patente através da presença de músicos em palco, alguns desempenhando personagens, explica Ana Luena.

Inspirada em Schubert

A peça é inspirada por “Winterreise” (“viagem de inverno”), um ciclo de canções compostas por Schubert para poemas de Wilhelm Müller e baseia-se também na vida do próprio compositor. A abordagem do confronto do criador com a criatura – encarnado na peça pelas personagens de Tristão e Franz, respectivamente – baseia-se no encontro real entre Schubert e Beethoven, já que o primeiro sempre viveu à sombra do segundo.

“Nenhures” perpetua a linha de pensamento do Teatro Bruto, que não trabalha com textos dramáticos preexistentes. “Se se quer criar um espaço que cruza linguagens como o cinema e a música, é complicado usar uma peça que já exista”, defende Ana Luena. “A renovação do teatro parte do próprio texto”, sublinha. A procura dos limites do teatro caracteriza a companhia. “Todos nós temos essa vontade de ir mais além, é essa a nossa busca da criação”, defende Ana Luena.

Na escrita dramática o autor “abandona-se”

É a primeira vez que o poeta e tradutor Daniel Jonas escreve um texto dramático. “Na poesia, a grande personagem sou eu próprio, e, embora haja uma grande dose de ficção, há uma heteronímia latente”, conta. Por oposição, na escrita dramática, o autor tem de se “abandonar” a si próprio para construir personagens que, no fundo, se criam a si próprias. “A certa altura há uma exigência das personagens, são quase criações espontâneas”, acrescenta Jonas.

“Nenhures” está em cena até 6 de Abril, de terça-feira a sábado às 21h30 e ao domingo às 16h. No âmbito das comemorações do Dia Mundial do Teatro, esta quinta-feira a entrada é gratuita.