Em entrevista ao JPN, Manuel Loff adopta uma postura crítica face ao comportamento da sociedade portuguesa em época de “crise económica e de confiança”, e alerta para a importância do discurso “desinformado” dos portugueses. Especialista e investigador em história política, ideológica e cultural nacional, o também docente na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) mostra-se contra a passagem da UP a Fundação, processo que considera um “erro institucional e filosófico”.

JPN: Considera que o que marca a história contemporânea portuguesa é a memória da repressão?

ML: Eu especializei-me nos regimes fascistas ou fascizados, como eu entendo que o Estado Novo português foi. E, nos últimos anos, tenho começado a desenvolver investigação em torno de como é que as sociedades em período de democracia, como aquela em que vivemos, se recordam dos períodos de opressão; no caso português, como se recordam da ditadura. Este é um aspecto essencial porque, no fundo, a qualidade da vida das democracias tem muito a ver com a forma como as sociedades recordam o período da opressão. Em Portugal fala-se muito de crise e partilha-se da ideia de que, em grande parte, a crise ou é motivada pela própria democracia ou pela incapacidade de, democraticamente, ser resolvida. Isto é uma construção ideológia puramente autoritária, que legitima as ditaduras, e que coincide com fases sociais e históricas nas quais indivíduos têm tendência a fazer um discurso mais ou menos nostálgico, claramente desinformado e com muito pouco conteúdo histórico relativamente ao autoritarismo.

Actualmente, que tipo de intervenção pode ter a História na sociedade?

Temos que reconhecer que o papel das instituições escolares e da investigação na formação de opinião histórica é muito pequeno. Nós podemos formar um médico que desconhece História, apesar de termos de confiar na sua capacidade cívica de conhecer o funcionamento da sociedade contemporânea, do sistema político, da diferençiação de classes. A História Contemporânea tem um papel muito importante na criação de uma espécie de memória do mundo. Eu sou partidário da tese de que não há nenhum futuro sem memória. As pessoas atrevem-se muito mais a fazer afirmações de natureza histórica do que afirmações da área da Física. Em plena crise económica e de confiança, a História pode ter um papel importante no estudo de como as sociedades reagiram e resolveram as crises anteriores e de advertência face a discursos perigosos e irresponsáveis, no sentido de prevenir posturas ideológicas como a que diz que, em situações de crise nós, para a resolvermos, temos de pagar algum preço e esse preço pode ser a liberdade, em nome da eficácia. A democracia não é votada de 4 em 4 anos, é um estado permanente de vida da sociedade. A ideia de que, para resolvermos determinados problemas, devemos pagar um preço democrático é, para mim, inaceitável. E a história ajuda-nos a perceber isso mesmo.

A sociedade aprende com os erros da História?

É pura ingenuidade acreditarmos que existem consciências colectivas que aprendem com os erros do passado, até porque seria necessário admitir a possibilidade de que grandes grupos sociais partilham as mesmas informações. E, depois, a passagem do tempo, que ajuda a esquecer. É verdade que as sociedades têm de esquecer, mas isso não impede que todas as vezes em que se aproximam tendências que fazem lembrar o passado, as saibam diagnosticar. Nesse aspecto acho que a Alemanha é muito mais honesta com o seu passado do que os portugueses são, por exemplo. Os portugueses fizeram, colectivamente, coisas muito graves, em torno da sua ditadura e do colonialismo, e hoje temos uma enorme dificuldade em aceitar isso. A nossa visão do passado é, pelos vistos, tão superficial que permite aflorar tão permanentemente o elogio da ditadura e do autoritarismo.

Concorda, então, com a ideia de Marc Bloch de que é preciso conhecer o passado para compreender o presente e o futuro?

Sim, até para construir o futuro. Para mim, é a imagem da cegueira histórica ou da cegueira na visão da realidade: se eu desistir de ver o passado em nome de uma terapia de “devo esquecer e não ver mais o passado”, como disseram muitos pensadores, tenho tendência a repeti-lo. Sei que envelheço com esta afirmação, mas uma das minhas preocupações é a sensação de ver sucessivas gerações de jovens, muitos dos quais extremamente criativos, com um enorme desarmamento na visão da realidade. Como vivemos na permanente cultura da novidade, achamos que o passar do tempo só traz coisas novas; mas o tempo traz reedições de coisas velhas. E achamos sempre que são coisas novas porque não conhecemos o passado. Nós não construímos nada de futuro sem conhecermos o passado.

Perfil

Nascido em 1965 na cidade do Porto, Manuel Loff licenciou-se em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 1988. Doutorado em História e Civilização pelo Instituto Universitário Europeu, em Florença, Loff regressou ao Porto para leccionar em várias licenciaturas e mestrados da FLUP. “O Nosso Século é Fascista!” e “Portugal, 30 anos de Democracia” são alguns dos títulos mais relevantes da obra do historiador portuense.

Como é que se pode tentar mudar isso? Passa pelos jovens e pela aproximação à História?

Passa, claro. Nós vivemos há 200 anos no triunfo do individualismo, porque vivemos em sociedades que, ao reconhecerem os direitos individuais, criaram, reconheçamo-lo, “um permanente estatuto de ansiedade”. Ora, na dimensão do individual, posso ter tendência a conhecer-me bem, mas tenho também tendência a desconhecer os outros. Acho que a recuperação da visão da necessidade do conjunto ajuda-nos a coisas como relativizar os objectivos que traçámos enquanto jovens, por exemplo. Por outro lado, os jovens que nasceram em Portugal a partir de 1980 são, provavelmente, a primeira geração de portugueses que viverá pior do que a anterior.

Porque é que esta geração pode passar a viver pior?

Graças a fenómenos contraditórios desta natureza: essa geração continua a ter mais educação do que os seus pais, está mais apetrechada, pelo menos formalmente, para ler o mundo, e teoricamente está mais qualificada para preparar a sua vida. Mas está a viver a convergência de dois factores. O beco sem saída em que entrou o modelo de desenvolvimento português, experimentado desde os últimos 60 anos, centrado numa revolução tecnológica que nunca soube combinar totalmente a necessidade evidente de melhoria da qualificação dos portugueses, por um lado, e a sua transformação numa nova qualidade de vida. Esta nova geração continua a reforçar o capital escolar relativamente às gerações anteriores, só que os seus pais viveram melhor nos anos 70, 80, 90, do que eles vão viver nos anos 10, 20 e 30 do século XXI. A minha esperança é que eles saibam consciencializar a sua circunstância e tentem mudar a sociedade em que vivem. Eu diria que a contestação na sociedade portuguesa está muito mais concentrada nos activos entre 30 e 40 anos do que nas pessoas que têm entre 20 e 30 anos. E contudo, do ponto de vista médio, quem tem entre 20 e 30 anos é quem está tramado.

Que diferenças encontrou quando regressou à Universidade do Porto depois de passar por Espanha e por Itália?

Estas políticas do ponto de vista do financiamento público, em que os governos europeus dos últimos 15 anos têm gradualmente reduzido o peso do financiamento público às universidades, são políticas generalizadas. Mas não foram tão acentuadas como aconteceu em Portugal. E, nesse sentido, a introdução de Bolonha foi pior ainda porque reduziu a dimensão das licenciaturas. Itália, na segunda metade dos anos 90, era um país no qual a percentagem de jovens a frequentar a universidade é muito superior à portuguesa. É claro que naqueles países também se fazia uma auto-crítica de excesso de diplomados que depois não encontram no mercado lugar. A dificuldade em empregar um licenciado é sintoma de uma sociedade que, ainda hoje, não privilegia o conhecimento, como a portuguesa. E acha, muito pragmaticamente, que se faz dinheiro de outra forma, sem “queimar as pestanas”.

Quais as apostas que a Universidade deve fazer a partir de agora?

Eu discordo do processo de fundacionalização da Universidade porque acho que abre portas a
uma forte componente de financiamento privado, a partir dos centros de investigação e dos projectos, com consequências para o futuro. É claramente um erro institucional e filosófico de concepção da Universidade começar um caminho de ligar umbilicalmenteo o mundo económico privado às universidades. No campo da investigação, uma das potenciais consequências é dar prioridade a um certo tipo de investigação, que vai ter muito mais financiamento que outro. Pelo contrário, se outro tipo de investigação, nomeadamente nas ciências sociais, não tiver resultados imediatos, poder definhar. Tenho receio que a Universidade do Porto esteja no pelotão da frente daquelas que podem vir a trair a essência do que é a universidade pública.