Aos dez anos, José Martins já arregaçava as mangas. Começou a trabalhar cedo e, desde então, nunca mais parou. Aos 16, partiu para França, em busca de melhores condições de vida. Não as encontrou. De regresso, aos 27 anos, toma uma decisão. Juntamente com o cunhado, Edgar Gonçalves, compra o “Piolho”, acedendo ao desejo de perpetuar a tradição académica. Hoje, com 55 anos, a mesma vontade persiste.

O “Piolho” ainda mantém a tradição do café dos estudantes?
Sim, sem dúvida. Com muito orgulho eu consigo preservar essa tradição. Digamos que tentamos acarinhá-los de alguma forma e eles retribuem com algumas palavras que me sensibilizam muito, tal como “esta é a nossa segunda casa”. Eles dizem muito isso (risos).

O que faz do “Piolho” um café tão popular?
Eu penso que é mesmo a tradição. Isto vem de geração em geração, os familiares transmitem uns aos outros, os próprios estudantes transmitem aos caloiros… já há um certo respeito pelo “Piolho”, do género [os doutores] dizerem aos caloiros “na faculdade entraste por mérito próprio, mas no ‘Piolho’ tu vais entrar quando nós quisermos” (risos).

A fama do “Piolho” vai mesmo além fronteiras?
Sim. Os alunos de Erasmus também levam o “Piolho” para o país deles. Os novos Erasmus, quando chegam, já perguntam pelo “Piolho”. Já sabem que é aqui que se encontram, que é aqui que se bebe boa cerveja e o “xiripiti” que foi inventado por mim. Comecei a trazer mel lá de casa e aguardente e faço a mistura.

Porquê “Piolho”? É um nome curioso…
Bom, “Piolho”, tanto quanto sei, porque se tornou num espaço demasiado pequeno para o grande aglomerado de estudantes que aqui se concentrava. Isto no tempo em que a Escola de Medicina era onde é agora o ICBAS e o pessoal se juntava aqui todo. Não se juntavam homens e mulheres no “Piolho”. Só os estudantes, não as “estudantas”, há 60 ou 70 anos, vinham ao “Piolho” e o espaço começou a tornar-se demasiado pequeno para tantos estudantes e eles acabaram por se considerar como uns “piolhos no meio do espaço”.

Já passaram pelo “Piolho” muitas gerações de capas negras, muitas gerações de estudantes. Lembra-se de alguma situação mais caricata?
Têm passado várias, sem dúvida… uma que eu achei piada foi quando uma pessoa me estava a pedir de beber e eu já não tinha mais copos. Mas não tinha mesmo! E disse-lhe “espere só um momentinho, deixe-me ir lavar o copo!” e a pessoa responde: “não, não se preocupe. Sirva mesmo nesse porque isto é para vomitar!” Depois, estou-me a lembrar, por exemplo, de uma da Amália Rodrigues que, por acaso, veio pedir um café ao balcão. Entra assim muito simpática e diz: “olhe, dê-me uma coisa daquelas que nós, em Lisboa, chamamos bica” (risos).

Há muitas figuras públicas a frequentar o “Piolho”?
Paravam aí muitas figuras públicas. Já tive o prazer de servir a Manuela Melo, o Ramalho Eanes,o Joaquim Letria… o Sérgio Godinho vem cá muitas vezes, o Pedro Abrunhosa quando vem ao café vem sempre convidar-me ao balcão. Ainda no outro dia esteve cá o Rui Reininho. Enfim, muitas mesmo…

Há muitas situações, digamos, de exagero?
Algumas, mas sempre com muito respeito. Não tenho razão de queixa nenhuma do estudante. Outro que se apresente mais embriagado ou que a gente veja que não pertence à “família estudante” nós recusamo-nos a servir e, como sabe, a lei permite-nos isso.

Fala de respeito… Sente respeito da parte dos jovens?
Sem dúvida. Aliás, eu não tenho razão de queixa de ninguém. Qualquer grupo de estudantes que entre aqui e, às vezes, altere um pouco a voz, até porque temos algumas reclamações da vizinhança, eu chego ao pé dos estudantes e faço-lhes compreender o incómodo que existe por parte dos nosso vizinhos e eles respeitam.

Tem certamente muitos clientes habituais. Qual a relação que tem com eles?
De amizade. A melhor. Eu vejo neles não um estudante, não um cliente, mas um amigo.

Consegue apontar um cliente que venha ao “Piolho” há muitos anos?
Há tantos. Eu não queria distinguir, são mesmo muitos. Por exemplo, um que ainda cá vem e que veio durante muito tempo, que parava aí todas as tardes quando trabalhava era o Manuel António Pina. Um entre tantos outros que eu lhe podia citar…

Tem um público também muito diversificado? Mesmo os antigos estudantes continuam a vir ao “Piolho”?
É isso mesmo que eles dizem: “Este é ponto de encontro de todos e não só dos estudantes. Quando queremos ver alguém, sabemos que no ‘Piolho’ vamos encontrar” (risos)

As paredes do “Piolho” estão cheias de placas, de memórias. Em que circunstâncias é que essas placas foram oferecidas?
As placas eram oferecidas ao “Piolho” quando os estudantes acabavam os seus cursos em homenagem, como agradecimento do tempo que cá passaram. Que gostaram e que foram bem tratados. E faziam questão de deixar aqui uma homenagem que se traduzia nessa placa.

Como encara estas ofertas?
Com orgulho, com muito orgulho mesmo. Muita satisfação, acredite. E há uma curiosa que me sensibiliza muito que é aquela em que os estudantes não terminaram o seu curso, mas quiseram deixar uma placa dizendo “não conseguimos fazer as cadeiras da faculdade, mas as do ‘Piolho’ fizemo-las todas!”

Ainda há espaço na parede para mais placas?
Há. E continuará a haver. Se não for grande, é mais pequenina, mas é recebida com muito orgulho e de igual forma. Há sempre…

Qual é a sensação de gerir um café com tanta história?
Traz-nos alguma responsabilidade porque nós queremos, não só manter a tradição, como também manter a qualidade. Por vezes, é impossível servir com qualidade todos os clientes. Ainda hoje juntou-se aí, num curto espaço de tempo, muita gente, e foi impossível satisfazer toda a gente como nós desejaríamos, com atenção e qualidade.

Este café é a sua segunda casa?
Eu acho que é a minha primeira casa. (risos) Eu sou ao contrário dos estudantes. Eles dizem que o “Piolho” é a sua segunda casa, mas é a minha primeira porque em casa não estou tanto tempo como aqui.