À volta da cozinha desde os dois anos de idade, Hélio Loureiro faz do lema “Quem não vive para servir, não serve para viver” o seu prato do dia. Mas, por baixo do chapéu de cozinheiro, este “pedagogo” gosta de ensinar as histórias que a gastronomia actualmente esquece.

Expressões como “vai à fava” ou “favas contadas” são passadas aos alunos do Instituto Superior de Turismo, em Seia. A arte está na moda, mas o chefe da Selecção Nacional de Futebol faz questão de transmitir às futuras gerações o legado que a culinária tem deixado na história portuguesa. O cozinheiro diz que, na cozinha, não tem nenhuma especialidade. Tenta, sim, dar o melhor em todos os pratos que constrói com os alimentos.

Hélio Loureiro confessa que abdica muitas vezes do conforto de casa e da família em prol de um jantar em representação do país ou para acompanhar o Presidente da República numa visita de estado. O chefe compara a alimentação de cada pessoa aos carros. Cada um tem o seu ritmo, alguns gastam cem litros aos cem, outros gastam apenas cinco, mas há quem armazene “gasolina a mais”.

Ainda se lembra do primeiro prato que fez?
HL: Do primeiro não. Mas lembro-me de algumas receitas que saíam na TeleCulinária, que começou a sair em 1976, tinha eu treze anos, e foi desde essa altura que comecei a cozinhar, sozinho em casa, e a mexer nas coisas da empregada que lá estava, que dizia mal da vida dela, e depois sujava a loiça toda.

Como surgiu o gosto pela cozinha?

É daquelas coisas que nasce. No outro dia entrevistava a Rita Ferro e perguntei-lhe se o dom que ela tem para a escrita é hereditário, ao qual ela respondeu que não, obviamente, mas a verdade é que estando perto das coisas, tendo acesso, no caso dela à literatura, no meu aos alimentos, é mais fácil desenvolvermo-nos. O que aconteceu comigo foi exactamente isso. Toda a minha família era dedicada e vivia à volta da cozinha e dos prazeres da vida, daí que desde os dois anos comecei a cozinhar.

Ainda há tempo para cozinhar em casa?

Quando estou em casa gosto imenso de cozinhar. Gosto de cozinhar para os amigos. Há uma frase que eu aplico muitas vezes que é: “cozinhar não é um serviço, mas é uma forma diferente de amar os outros”. De facto, aquilo que eu faço em casa é uma forma de amar os amigos e a família, de os acarinhar com o trabalho que consigo fazer com os alimentos e é um momento relaxante e reconfortante no dia.

Perfil

Natural de Cedofeita, no Porto, Hélio Loureiro dividiu a sua juventude entre o Liceu D. Manuel II e o Liceu de Matosinhos. Dois anos volvidos, concluiu o curso na Escola de Hotelaria e Turismo do Porto. Há doze anos, quando estava de férias em Porto Santo, o telemóvel tocou. Do outro lado, convidavam-no para para ser cozinheiro da selecção nacional de futebol, o que lhe deu projecção no panorama gastronómico português. “Receitas com tradição” é o título de um dos livros de Hélio Loureiro, que nunca deixou de esconder a sua costela monárquica.

Os pratos que cozinha são criados ou surgem a partir das receitas?

Quando se pergunta o que é a inspiração ou o que é a criatividade, ela só surge perante duas coisas muito importantes: o tempo e a observação. Às vezes, o acto repetido das receitas é a parte chata do trabalho de um chefe de cozinha. O mais interessante é a parte criativa. Muitas vezes há que respeitar a herança gastronómica que nos foi deixada e que nós temos obrigação de transmitir. Tradição quer dizer, exactamente, transmissão de conhecimentos e eu trabalho muito dentro dessa área que é transmitir aquilo que nos foi deixado pelos nossos antepassados, numa atitude mais moderna, ou seja, sem alterar as receitas que já existem mas criar coisas novas. Não é um acto inventivo, mas sim um acto criativo. Muitas vezes já está feito, é só saber juntar os ingredientes.

No meio de tantas receitas e de tantos eventos como é que é possível manter a linha?

Essa é a parte mais complicada. A verdade é que há a tentação, quando se está sempre na cozinha, de provar, de ter perto de nós aquilo que é o pecado, da gula, no sentido de comermos mais do que aquilo que precisamos. E depois é a predisposição genética que tenho que me leva a engordar com mais facilidade do que outras pessoas e que faz que tenha um cuidado reforçado com a alimentação. Por isso, é que os últimos livros que tenho escrito têm a ver com cozinha saudável. Para se seguir à risca o que lá está mas sobretudo para conhecermos os alimentos, quais são os que nos fazem bem e os que nos fazem mal.

Um prato favorito?

Para comer gosto de tudo. Os entendedores de gastronomia sabem muito bem o que eu digo. É que é tão apetecível uma batata cozida com um bom azeite, como o melhor caviar do mundo acompanhado do melhor champanhe. São registos diferentes. Agora, aqueles pratos que me dão prazer são os que nos contam uma história ou que nos podem ensinar momentos que aconteceram. Por exemplo, as Amêijoas à Bolhão Pato. Toda a gente conhece Bolhão Pato, pelas amêijoas e pela perdiz. Ou, por exemplo, as Tripas à Moda do Porto, que nos contam a história de um povo, que recebe o nome do prato que come: os tripeiros. E todas as lendas criadas à volta das tripas estão ligadas a uma coisa só, que é a partilha e o desejo de partilhar com a Pátria. Todos esses pratos contam-nos estas histórias. É o que acontece com o Vinho do Porto de 1944. Sentimos que estamos a beber um Vinho do Porto do dia D e do Desembarque na Normandia. Esses pratos não são só para se degustar, mas são pedaços da história que se saboreiam.

O que é preciso para se ser um bom cozinheiro?
Quem quiser ser cozinheiro, primeiro tem de ter o espírito de que não é um serviço mas uma forma diferente de amar os outros. E só quando as pessoas entenderem isto e que vão ter que trabalhar sábados, domingos, na passagem de ano, no Natal, na Páscoa, em alturas em que normalmente as outras pessoas estão em casa, é que entendem a cozinha. A cozinha é a arte de dar a felicidade às pessoas. E se nós não nos despojarmos deste sentido de trabalhar das 9 às 5, nunca conseguimos ser chefes de nada, porque estamos mais preocupados com o nosso tempo livre do que com o tempo livre das pessoas.

Que paixões esconde por detrás do chapéu da cozinha?
A paixão é tão efémera como a cozinha. Eu gosto mais de dizer que são os amores da vida, que são exactamente os amigos, a família, os afectos. Agora o que gosto de fazer nos meus tempos livres é a música, os livros, os concertos, as exposições de pintura, mais uma vez, a observação. A história, tentar perceber o que está para trás. Quando percebemos há tantas coisas que podemos evitar, desde as crises económicas às guerras, aos genocídios. Se aprendêssemos com a história… mas a história fica nas prateleiras, as pessoas esquecem-na.

O que não se esquece certamente é ser agraciado pelo Presidente da República.
Ser agraciado pelo Presidente da República é sempre uma homenagem que nos obriga a ser mais. Os prémios ou agradecimentos, seja pelo Presidente da República ou pelo comendador da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, ou os reconhecimentos, como a Medalha de Mérito de Honra da Cidade do Porto, só me fazem pensar uma coisa, que é obrigar-me a ser cada vez melhor e a dar mais de mim. Como dizia Churchill, “as comendas e os agradecimentos não se pedem, não se recusam, não se agradecem, aceitam-se”. Mas essa aceitação obriga ainda a ter mais responsabilidade. As pessoas olham para nós como um exemplo e esse exemplo tem que ser seguido, continuado e cada vez melhor.

Falou em livros e música. O que é que gosta de ler e de ouvir?
Eu leio muitos romances históricos. De facto, é o que eu gosto mais e também foi isso que me levou a escrever um romance sobre o cozinheiro do rei D. João VI. O rei D. João VI é uma figura que sempre me interessou muito e é curioso que o livro sai exactamente no segundo centenário da partida da Corte para o Brasil, por mera coincidência. Na música prefiro os clássicos, mas também gosto de Rufus Wainwright ou de jazz. Mas a música clássica é aquela que me desperta mais emoções.