A teu ver o que é que falta no cinema português?

Acho que falta principalmente espaço para o cinema português ser visto. Vivemos dentro de uma lógica muito, muito capitalista, o que está a causar que as peças de cultura estejam a ser perversamente transformadas em produtos de consumo rápido também. Isto acontece especialmente no cinema: os filmes que vemos nas salas ou mesmo na televisão são filmes muito formatados. muito uniformizados. De algum modo, há aí um paradoxo muito grande que é vivermos numa democracia mais ou menos aperfeiçoada que nos dá a liberdade para através dela dizermos tudo sobre aquilo que quisermos, e termos por outro lado as pessoas a dizer a mesma coisa. Portanto eu acho que o cinema português precisa do seu espaço. Isto tem a ver com a distribuição e com a exibição; eu acho que os festivais de cinema são uma prova disso, que os filmes portugueses começam a ser vistos, começam a ser discutidos, merecem que haja um ambiente de crítica e discussão à volta deles, como acontece por exemplo com o novo cinema romeno ou o novo cinema argentino, mas essencialmente o que é preciso é espaço para o cinema português ser visto.

Mas essa uniformização não é propriamente um fenómeno português…

Acho que é um fenómeno que está a acontecer um pouco por todo o lado, a uniformização da produção pela globalização. Acho que o cinema português apesar de tudo, tem conseguido escapar da uniformização porque ainda se consegue fazer com bastante liberdade, embora haja muitos poucos cinéfilos. Eu diria que em Portugal há grande liberdade, por isso é que todos os autores são tão diferentes. É uma cinematografia muito representativa por essa diversidade. Agora, na prática, o problema é não há espaço para os filmes serem vistos, porque é isso que conta, a relação muito perversa entre o artista e a arte e a indústria. Neste caso, eu tenho que entrar em contacto com o comércio, ou seja, perceber que o facto do cinema ser uma indústria não é nada de muito preocupante, porque é preciso gente para fazer um filme, da mesma maneira que é preciso gente numa fábrica, para construir uma casa ou para fazer o pão.

Qula é o impacto desse processo no produto final?

O problema é que quando se entra no circuito comercial, exige-se que um produto artístico tenha lucro. Nesse sentido é que as coisas começam a correr mal porque exige-se que o cinema português tenha um número de espectadores comparável com o cinema americano de dinossauros. E nesse sentido acho que falta meter dinheiro por intervenção do estado, caso o estado ainda acredite que a cultura é um bem importante da sociedade democrática, que é imprescindível na cultura portuguesa vá, e na cultura em geral: não só estou a falar dos filmes de autor portugueses, mas europeus, americanos também. A verdade é que não há espaço para mostrarmos os nossos filmes fora do circuito dos festivais. Um exemplo disso é um filme como o “Arena” que acaba de receber uma Palma de Ouro, mas que ainda não decidimos se vai estrear nas salas, eu acho que sim mas até pode ser que não. Isto é um grande paradoxo, quer dizer, há muitas pessoas que me têm escrito mailsblockbusters de Verão. Eu acho que o problema não é a qualidade dos filmes portugueses, porque eles têm qualidade intrínseca, acho que é a exibição.

“Saindo” agora de Portugal, passaste alguns anos a estudar em Buenos Aires. De onde surgiu essa ideia?

Foi um bocadinho no seguimento disto que já disse. Numa das primeiras edições do IndieLisboa, houve um ciclo dedicado ao novo cinema argentino, e causou-me imenso impacto a obra da Lucretia Martel. Comecei a interessar-me por esse fenómeno, de como a Argentina de repente teve assim tantos filmes interessantes, que estavam a voltar para as coisas concretas. Foi por isso que senti vontade de ir lá, para ver o que se estava a passar.

E a que conclusões chegaste?

Acho que principalmente foi uma coisa muito concreta, que foi o Instituto de Cinema Argentino ter criado condições, reestruturado as formas de conhecimento dos filmes e diversificado os apoios, de modo a que toda uma geração com menos de 40 anos de idade tenha começado a filmar, portanto sobretudo pessoas que durante a ditadura argentina ainda eram jovens, crianças, são pessoas que de facto cresceram no período pós-ditadura – foram esses jovens que começaram a voltar-se para o passado e a questionar uma data de coisas e começaram a filmar… Isto do cinema voltar a aproximar-se das coisas concretas, sem querer fazer grandes comparações, também é um pouco o que acontece nos anos setenta nos Estados Unidos com o cinema independente americano e é um bocadinho o que aconteceu também no pós-guerra com o neo-realismo italiano, claro que em contextos diferentes, mas acho que é esta aproximação à vida e à realidade que fez com que surgisse interesse pelos agentes díspares do cinema.

A intervenção social é essencial para um cinema saudável?

Não necessariamente, se bem que acho que há sempre um acto político por detrás de cada filme ou pelo menos devia haver. Os irmãos Dardenne dizem que uma obra de arte deve sempre insurgir-se contra qualquer coisa. Se calhar isso é um pouco exagerado e radical. Eu acho que a intervenção social é feita pelas pessoas no dia-a-dia, na sua vida, o cinema só tem que estar atento e filma-las. Não sei se chamo a isto intervenção social ou apenas observação social, digamos. Eu acho que o espaço de intervenção transcende o cinema, é fora do cinema. O cinema agora, o cinema e a arte toda ela, acho que têm de estar atento a isto, porque o mundo é demasiado complexo para o compreendermos sem a arte. Mas não sei se acredito nesta ideia que o cinema pode mudar o mundo. Pode mudar o dia-a-dia, é uma coisa que estou a tentar perceber ainda.

Separas a tua obra artística do trabalho que fizeste para os tempos de antena do Bloco de Esquerda?

Sim, totalmente. Eu tenho alguns amigos, tenho algumas relações pessoais com pessoas que estudaram comigo na escola de cinema, e que neste momento estão aliados ao Bloco de Esquerda. Eu pessoalmente sou apartidário, tenho uma relação muito difícil com qualquer instituição, aliás, um dia se calhar até me vai interessar filmar mesmo o funcionamento ou o “desfuncionamento” das instituições. Portanto sim, foi um trabalho muito técnico. Aliás foi uma coisa que me confundiu um bocadinho, porquê é que uma certa comunicação social deu tanto ênfase a isso, como podia ter dado a outros trabalhos técnicos que eu já fiz: já fiz edição de televisão, já fui assistente de montagem em outras coisas pouco relevantes, portanto separo completamente isso. É um trabalho muito técnico. É claro que sou de esquerda, não tenho problema em assumir-me, sou uma pessoa da esquerda, mas não tenho nenhuma relação institucional com nenhum partido nem penso vir a ter.

Da última vez que falamos, disseste que admiras realizadores que evitam a moral. Porquê?

Porque eu acho que um filme para se transcender tem que deixar espaço para todo o tipo de leituras possíveis. Se fizermos o filme de uma maneira moralista, isso vai condicionar o olhar do espectador. O espectador vai ver aquilo da maneira que nós queremos que ele veja. Um exemplo muito concreto e famoso deste tipo de cinema pode ser o Steven Spielberg. Nos filmes do Spielberg, ele cria uma relação de pena com algumas personagens, e uma relação mesmo misericordiosa com algumas das personagens, e uma relação engrandecedora com outras das personagens, portanto o realizador emite a sua moral em relação àquilo que está a ver, e pede ao espectador que participe neste julgamento, que pode ser positivo ou negativo. Eu, pelo meu lado, acho que é o contrário. A mim só me interessa filmar a luta diária das minhas personagens e deixo a moral para as pessoas. Agora, eu sei que é impossível atingir um cinema totalmente amoral. Eu sei que isso é impossível, mas tento ao máximo deixar espaço para que o espectador coloque a sua inteligência e a sua sensibilidade nos filmes, porque eu acredito que um filme é uma experiência individual, e tirada do individual para o colectivo. Agora se quando vamos ao cinema, toda a gente sente-se da mesma maneira, chora nas mesmas cenas e ri nas mesmas cenas, é porque há um maestro com a sua orquestra que conseguiu dominar-nos a todos, não é? Eu não gosto de ser dominado por nada e por ninguém, muito menos um filme, portanto também não tenho a ambição de fazer isso ao espectador.