João Salaviza constitui uma história de sucesso como poucas vezes se vê em Portugal: um jovem realizador, cujos créditos se resumem a duas curtas metragens (uma delas um projecto universitário) e uns quantos trabalhos “técnicos” (adjectivação que Salaviza usa para definir o seu trabalho de edição em filmes, programas televisivos e alguns tempos de antena do Bloco de Esquerda) vai ao internacionalmente conhecido Festival de Cannes, ganha a Palma de Outo para Melhor Curta-Metragem e, de regresso ao país, vê-se subitamente lançado nos media.

Mas o discurso de João Salaviza não é só triunfo. Grande parte da entrevista do JPN ao jovem realizador, feita ao telefone, debruçou-se sobre as dificuldades de distribuição no cinema português, o monopólio dos blockbusters e o destino indefinido de “Arena”, a curta metragem que lhe valeu o prémio em Cannes.

JPN: Quando é que decidiste ser realizador?

João Salaviza:Eu sempre tive algum contacto com o cinema, através do meu pai, que também trabalha no meio (fez por exemplo a montagem em filmes do Paulo Rocha). Portanto, sempre tive isso muito presente – embora não sinta que existisse uma influencia directa, até porque na altura nunca pensei que iria trabalhar em filmes. Quer dizer, sempre quis ser escritor ou jornalista, até me podia posicionar perto do cinema, mas seria a escrever. Mais tarde, comecei a interessar-me a sério pelo cinema: foi nessa altura que comecei a ver os filmes do Kiarostami, que me interessavam imenso, ver coisas diferentes. Mas acho que só na faculdade, a propósito dum trabalho de cinema , é que percebi que queria mesmo seguir a carreira nessa área. Foi esta a primeira experiência que me levou a pensar mesmo a sério nisso.

E a experiência como actor no início da carreira, ajudou-te a lidar melhor com os actores nos teus filmes?

Sim e não. Eu tive essas experiências como actor muito novo, era muito pequeno e não considero que estava a ser um actor, porque para mim eram pequenas brincadeiras, participava em pequenos filmes portugueses, era mais um pretexto para me divertir e para faltar à escola; eu não levava aquilo muito a sério. De qualquer maneira, há coisas que nos ficam: mesmo da perspectiva de um miúdo, porque eu era um adolescente digamos, lembro-me do desconforto que é ter de dizer uma frase com a qual não nos sentimos bem, fazermos alguma coisa que nos mandam fazer, sem percebermos porquê. Eu acredito que o trabalho dum actor é revelar uma verdade sobre si mesmo. Por isso, eu tento criar espaços para os meus actores.

Escreves sempre os guiões para os teus filmes?

Não. O primeiro trabalho que fiz foi na faculdade, uma curta chamada “Duas Pessoas”, é uma adaptação de um texto de Herberto Hélder, feita por Inês Clemente – que curiosamente foi directora de som neste “Arena”. Também me lembro de outras curtas metragens que nunca chegaram a estrear porque eu fiquei insatisfeito com algum aspecto, e o “Arena” é a primeira vez que tenho um trabalho escrito e realizado e montado tudo por mim. Eu tenho uma relação muito particular com a escrita porque tenho alguma dificuldade em envolver-me durante quatro meses com a escrita de um projecto, sabendo que no final vou-me confrontar com a realidade que sugere sempre que aquilo que escrevi não fazia sentido, e julgo que também foi com essa abertura que parti para o “Arena”. Eu tinha uma estrutura narrativa relativamente construída, tinha ideias de diálogos, mas percebi que os actores, com o seu projecto, a sua sensibilidade conseguiam sempre melhorar o que eu escrevia. Cada vez mais, o cinema contemporâneo começa a perder essa coisa muito ditatorial de ser uma pessoa a escrever, e adapta-se mais à realidade, portanto cada vez mais acho que tem que haver aqui um compromisso entre as ideias do guião e aquilo que a gente em directo lhes dá.

Como foi trabalhar com Manoel de Oliveira? (João Salaviza foi assistente de montagem em “Singularidades de uma Rapariga Loura”)

Só a trabalhar com Manoel de Oliveira é que percebi qual é o núcleo central que atravessa um realizador, que é tomar decisões com base em critérios. No fundo, é isso que faz o Manoel de Oliveira. Além desse trabalho, a outra coisa que faz é usar o seu corpo para coordenar as funções do espaço físico, mas utiliza acima de tudo a sua capacidade de decidir. Portanto, o que também senti no Manoel de Oliveira é que tem uma maneira de pensar no cinema muito, muito própria, justamente assente em critérios estéticos. Tenho para sempre essa coerência de Manoel de Oliveira como referência, se bem que é verdade que os meus critérios são diferentes dos dele, são de séculos diferentes. Portanto, acima de tudo é uma questão de seguir os meus critérios, foi essa a grande lição que aprendi com Manoel de Oliveira e com o “Singularidades de Uma Rapariga Loura”.

E achas que ter uma colaboração com Oliveira no currículo pode ter ajudado ao “Arena” a nível internacional, em Cannes por exemplo?

Não não. Até porque a maioria das pessoas não tinha visto o filme quando ganhei o prémio. O meu trabalho foi principalmente técnico, fui assistente de montagem, é uma função que é creditada no trigésimo lugar. É claro que um papel, mesmo muito pequenino, num filme do Manoel de Oliveira, para mim foi uma experiência enormíssima.

Daí até à vitória em Cannes acabou por ser um pequeno passo. Que pensas fazer a seguir?

Neste momento, se tudo correr como tinha combinado, eu queria antes de mais nada avançar com mais uma curta-metragem, antes de me aventurar para uma longa, embora não saiba se assim vai acontecer ou não. Eu estou com os pés na terra e quero agora começar o processo de desligar-me do “Arena” e começar a pensar no que me interessa fazer a seguir. Provavelmente vou continuar a filmar dentro dos espaços urbanos e suburbanos, digamos que são espaços a que sou sensível e que deviam ser filmados, mas ainda é um projecto muito muito embrionário.

Ainda não há um elenco definido para essa próxima curta-metragem, portanto?

Ainda não há sequer um guião escrito. Ainda está mesmo numa fase muito embrionária.

Portanto, não está confirmado que “Arena” vai estrear em Portugal?

Não está confirmado, temos agora uma produtora que está a negociar isso com algumas distribuidoras. Estamos optimistas que vamos conseguir que o filme estreie, mas também é importante dizer que se o filme vai estrear, terá em grande parte a haver com o facto de ter sido legitimado pelo festival de Cannes. Isso é uma coisa perversa – ao mesmo tempo, há um interesse muito grande por um rapaz muito novo que teve em Cannes, eu compreendo isso e fico feliz que haja muitas pessoas que estejam entusiasmadas connosco. Por outro lado não há o mesmo entusiasmo pelo filme. Eu tenho vindo a tentar que ele estreie, quero ser julgado pelo meu trabalho e não pelos prémios, porque os prémios são coisas que me ultrapassam, que são uns tiros na lua. Quer dizer, se este filme não tivesse sido coroado continuava a ser o mesmo filme, mas se calhar modificava a postura para sempre, não é, e isto é uma coisa complicada. O prémio revela muito mais sobre o júri que sobre o filme. Um grupo muito pequeno de pessoas apreciou o “Arena” e ainda bem, ainda bem que esse grupo de pessoas gostou do filme, mas há muitos filmes portugueses que por alguma razão não venceram nenhum prémio, e que podem permanecer obscuros – eu próprio não pude ir ver e gostava de ter visto.