No exíguo espaço entre a parede do fundo e o espelho colado na porta do camarim, Filipe Resende prepara-se cuidadosamente para o show, que, como em todas as noites de quarta-feira, começa por volta da 1h30. É um dos três transformistas do Boys’R’Us, um dos poucos espaços LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgénero) existentes no Porto.

“Já viu o tamanho do nosso camarim?”, comenta Filipe, daí a nada Lady Slim. “Eu sou o único que se prepara aqui. Isto tudo é o meu guarda-roupa”, mostra. Na prateleira sobressaem uns sapatos de salto alto amarelos. “Quando eles chegarem, tenho de arrumar tudo para um canto, para eles pousarem as coisas deles”, explica, apontando para a maquilhagem espalhada em cima da mesa.

Travestismo e transformismo:

A distinção entre travestismo e transformismo não é consensual, como explica o presidente da associação Panteras Rosa, Sérgio Vitorino. “Existe o conceito de transformista, usado exclusivamente no contexto das artes performativas, e o de travesti, que pode ir muito para lá do mundo do espectáculo”, clarifica o presidente desta associação LGBT. Conta que muitas pessoas não gostam de usar o termo travesti pelas conotações negativas que lhe são feitas, nomeadamente no que toca à prostituição. “O que algumas pessoas querem é evitar ser confundidas.”

Filipe não se considera travesti. “Não gosto muito do termo, porque acho que um travesti é aquele que quer assumir, quase no dia-a-dia, uma posição feminina”, explica. “No meu caso, e dos meus colegas actuais, trata-se mais de transformismo, porque antes de entrar em palco fazemos a transformação, assumimos outra personalidade e, uma vez terminado o espectáculo, retiramos todos os artefactos e voltamos a ser os rapazinhos que somos.” O artista diz já ter sido alvo de discriminação e lamenta que se relacione este tipo de trabalho com a prostituição. “Não o faço por dinheiro, porque aquilo que se recebe num trabalho destes é, na maior parte das vezes, para gastar no guarda-roupa e nos acessórios.”

A personagem Lady Slim existe há cinco anos, mas o criador já faz animações desde o início dos anos 90. “As minhas performances são inspiradas em cantoras, mas têm sempre o meu cunho pessoal”, salienta. Shirley Bassey, Goldfrapp, Sophie Ellis-Baxter, Grace Jones e Stacey Kent são algumas das referências.

Filipe Resende defende que todos os homens têm um lado feminino, assim como as mulheres têm um lado masculino, ainda que uns mais, outros menos. “Alguns não querem assumir essa globalidade”, diz. Encara o transformismo como um espaço para a exploração da outra parte dessa dualidade, para a libertação da figura feminina em si latente.

“Quando havia rusgas, era um circo”

“Pronto, a partir daqui já pode fotografar”, autoriza Filipe, que não gosta de ser fotografado enquanto ainda não tem o rosto coberto pela primeira camada de base. “A parte pior é disfarçar a barba”, comenta, enquanto se esmera por escondê-la com espessas camadas de maquilhagem.

“Quando isto não está no fim, torna-se mais fácil”, graceja, enquanto tira da embalagem os últimos restos de base com o cabo de uma escova para sobrancelhas. A preparação de um transformista para o show não é coisa rápida. Filipe começa a preparar-se à meia-noite para, uma hora e meia depois, Lady Slim estar pronta para descer as escadas que a levam ao palco.

No Porto, a oferta de bares com show de transformismo regulares reduz-se a dois – o Boys’R’Us, que, de acordo com o dono, Miguel Rodrigues Pereira, foi um dos primeiro espaços assumidamente LGBT da cidade, e o Pride, mais recente. Em tempos, podia-se assistir a este tipo de show no Moinho de Vento, que reabriu recentemente, após mais uma remodelação. Tratam-se de bares que, essencialmente, são frequentados por gays. Já em Lisboa, a oferta é mais diversificada.

Mas já tempos houve em que a actividade só podia ser exercida clandestinamente, como conta Filipe, que conhece algumas histórias pelos relatos de amigos mais velhos. “Trabalhavam em casas clandestinas porque, antigamente, as casas gay não o eram abertamente”, explica. “E pode-se imaginar o que é que acontece numa rusga policial… Era um circo….”

Nani Petrova

“Isto agora é o céu.
Antigamente era o inferno”

Nani Petrova, o transformista mais antigo da cidade

Quem pode falar por experiência própria é Fernando Soares, ou Nani Petrova, dependendo da altura do dia em que o encontrarmos. Estreou-se nestas andanças por brincadeira, já há 35 anos. Hoje, aos 61, ainda é transformista, o mais antigo da cidade, dos mais velhos de Portugal.

Mesmo na penumbra da sala do primeiro piso do Boys’R’Us, sobressai a maquilhagem carregada. Sobrancelhas desenhadas a preto, pestanas postiças, sombras de um metalizado berrante. Dá a entender que Nani Petrova é uma drag-queen (drag é o acrónimo de “dressed as a girl”). E, de facto, segundo Fernando, as suas personagem são “burlescas”, dentro do género drag-queen, para se conseguir identificar com a nova geração.

“O vestido é um instrumento de trabalho”

Ao contrário de Filipe, Fernando não sente nenhum fascínio em especial por acessórios femininos. “Para mim, o vestido é um instrumento de trabalho. É como uma bata para um médico ou como um fato-macaco para um mecânico”, explica, numa tentativa de deixar bem claro que é apenas transformista e nunca sentiu vontade de ser mulher.

Não partilha do pessimismo de Filipe ao olhar para os dias de hoje. “Isto agora é o céu. Antigamente era o inferno”, compara. Lembra-se dos tempos em que era maltratado por rapazes da idade dele. Conta que os preconceitos o fizeram passar por muitas dificuldades, mas que sempre se recusou a prostituir-se ou a roubar. “Vi sempre isto [o transformismo] como um trabalho, como uma arte”, justifica Fernando, que diz que se deve retirar daqui a um ou dois anos.

“Esta geração está bem. Na minha não havia nada disto, nada disto”, repete, enquanto deixa escapar um lamento com arrebatamentos de nostalgia. “Os jovens têm tudo, agora não há aquelas coisas de gays para um lado e os outros [heterossexuais] para o outro.”

Antes do 25 de Abril, diz, é que as coisas eram complicadas. “Na altura não havia nada. Eu comecei este tipo de trabalho em casas particulares. Juntávamo-nos em casa de um amigo e fazíamos umas brincadeiras”, recorda. “Depois deu-se o 25 de Abril, houve mais liberdade, e abriu um bar”, continua. Era o Kilt, nas galerias do Hotel Malaposta, o primeiro bar assumidamente gay da cidade.

“Fui para lá, porque tinha jeito para este tipo de trabalho”, conta, orgulhoso. A partir daí foram abrindo mais bares do género, como o Bustos, na Rua do Bonjardim, e o Colibri, em Santa Catarina. “Havia pouca gente a trabalhar na área. Eu fui o primeiro a fazer show“, diz o transformista.