Pelo que me diz parece que o seu acto de filmar é quase uma acção de psicanálise. O mesmo acontece com o clip da Dido (ver filme). Foi uma proposta em que tentou assumidamente chegar às pessoas. Acha que a câmara pode dificultar a comunicação e é por isso que tenta estudar as pessoas antes de as filmar?

Muito. Obviamente [que] eu ainda sou muito nova na experiência da realização… É como o vinho, tem de se dar tempo e amadurecer. Mas acho que o meu cunho é esse. O meu primeiro passo é perceber as pessoas. Eu lembro-me que no filme da Dita eu investiguei a Dita de tal maneira que antes de fazer uma pergunta eu sabia exactamente o que ela ia responder. Tento filmar de forma a que as respostas não sejam óbvias. Faço o trabalho de preparação e depois afasto-me para não obrigar quem está a ver a dar uma resposta. Eu gosto de dar espaço de interpretação.

Considera-se quase como uma provocadora nesse sentido?

Muito, muito. Espero que sim, pelo menos é isso que eu tento ao máximo: provocar uma reacção ou um interesse. O filme da Dita tinha de ser um teaser, estava ali uma mulher lindíssima com muitas coisas interessantes para dizer, mas não queria obrigar as pessoas a formar uma opinião, queria que as pessoas olhassem, se deslumbrassem e pensassem: “Eu quero saber quem é esta mulher”. Não quero dar as respostas.

“Tento filmar de forma a que as respostas não sejam óbvias”

Desculpe interrompê-la, mas por que é que escolheu a Nazaré e os pescadores?

Ao ouvir a faixa, que se chama “The Day Before The Day”, é uma música muito pessoal – penso que ela a escreveu quando o pai morreu – quase uma ode à morte, mas não à morte trágica, mas [para] ver o lado belo da vida. Quando comecei a tentar dissecar qual era o tema que eu sentia naquela música, automaticamente pensei: “isto é a vida dos pescadores”. São pessoas que lidam muito com a morte e continuam a ter uma força incrível, não são tristes em relação a essa experiência. Há uma tristeza subjacente, mas não é dramático nem exagerado.

Achei um tema muito português. A Nazaré fez muito sentido porque é uma população com muita cultura e tradição de pescador e, quando se vai à Nazaré ou ao cemitério da Nazaré, e se olha para as campas de gente com 20 ou 30 anos, percebe-se que a morte é uma coisa muito presente na vida das pessoas. Vê-se a campa do pai ao lado da do filho ou do tio ou primo. Dentro das famílias já se perdeu muitas pessoas para o mar. E continuam a ir para o mar, continuam a ir pescar.

Mais uma vez tentou encontrar uma pessoa, o pescador mais jovem, que fosse como que um cartão de visita da Nazaré e da música.

Como o tema subjacente era a morte, eu não queria ser dramática. Tinha medo que isto se tornasse dramático porque não estava interessada em puxar a lágrima. É muito fácil, com uma música que fala da morte, retratar-se o tema de maneira quase instantânea: faz-se dois ou três shots fortíssimos e as pessoas ficam com um impacto gigante e pensam – “ai que horror, é a morte”. Eu quis fugir disso. Acho muito mais bonito chegar-se à emoção sem ter que ser óbvio, sem ter que ser espetado na cara. As pessoas da Nazaré são muito alegres, muito bem dispostas, mas quando param têm naturalmente uma expressão muito marcada e triste e acho que isso já vem de muitos anos de tragédias.

Eu não queria que o filme fosse pesado ou triste porque há beleza nesta sobrevivência e estilo de vida e achei que precisava de um pescador novo para haver um sentido de continuidade e uma ideia de esperança que levasse a história e que carregasse a história atrás de si, daí ter encontrado o Fábio, o tal pescador mais novo. E acabou por resultar de uma forma muito interessante porque o Fábio não parece um pescador e toda a gente acha que ele é um actor ou modelo que eu contratei, o que não é de todo verdade (risos). Eu não filmei nada que aquelas pessoas não façam no seu dia-a-dia. Acabou por me ajudar no sentido de provocação de que falávamos há pouco porque faz as pessoas questionar muita coisa.

“Há o nervosismo das pessoas me verem como a miúda de 20 e tal anos”

Mais uma vez a questão de estudar o campo e conhecer a fundo a Nazaré e as suas pessoas. Faz sempre esse trabalho de campo em tudo?

Tento. É das partes que eu mais adoro, é esta parte de investigação e pesquisa. Eu lembro-me que quando fiz o meu primeiro filme publicitário, um dos realizadores da Knucklehead ligou-me a desejar boa sorte e eu perguntei-lhe se tinha algum conselho para me dar. Lembro-me perfeitamente que a resposta foi – “o mais importante é, quando te fizerem uma pergunta, teres resposta, sempre, para tudo”. E eu fiquei tão obcecada com esse comentário que quando entrei nesta fase mais séria da realização fiquei obcecada com a obrigação de ter sempre resposta e de nunca me deixar surpreender.

Quando se começa a realizar muito nova e se é rapariga, o que não é muito normal neste meio, há um nervosismo a que eu não gosto de dar muita importância, mas que está lá, não posso negar, que é o nervosismo das pessoas me verem como a miúda de 20 e tal anos. Eu tinha sempre muito cuidado para mostrar que tinha uma ideia muito definida do que queria.

Fala no passado. Já não tem esse receio?

(Risos) Tenho, mas acho que mudei. A minha postura mudou. Quando comecei a realizar tinha esse tipo de nervosismo e sentia essa obrigação e felizmente tive a oportunidade de trabalhar com pessoas muito boas, nomeadamente neste último projecto da Oliveira da Serra em que trabalhei com um director de fotografia e com um editor fenomenais. E trabalhar com o Barry Ackroyd [director de fotografia em “Estado de Guerra”, vencedor dos Óscares de 2009] trouxe-me quase uma luz na minha experiência de realizadora. O Barry tem um CV fantástico e tem muitos anos de experiências fenomenais e quando trabalhei com ele a simplicidade e a forma prática e descontraída dele filmar quase me fez sentir liberta. Senti que não era má profissional por seguir os meus instintos e ter um pensamento livre a tempo inteiro. Devolveu-me a liberdade na realização que eu estava a perder por sentir um dever de obrigação constante.

O anúncio para o azeite Oliveira da Serra (ver filme) foi filmado em Portugal?

Foi tudo filmado em Portugal, sim.

“Gastámos quatro toneladas e meia de azeitonas”

E as azeitonas a cair. Como é que fez isso?

Eu tenho um elemento no meu trabalho que valorizo muito que é a realidade. Eu gosto que as coisas sejam o mais reais possível e insisti, desde a primeira proposta, que eu tinha de fazer a chuva de azeitonas de verdade. Se aquilo fosse tudo feito em pós-produção, acho impossível que não se notasse, não dava para enganar as pessoas. E não gosto dessa experiência, não gosto de ser enganada e de sentir que estou a ser enganada emocionalmente. Andámos a estudar métodos e a ver o que seria possível fazer e acabámos por testar algumas formas de fazer a chuva. Usámos máquinas de confetti, mas a disparar azeitonas, a uma escala de várias máquinas a disparar muitas azeitonas (risos). Gastámos quatro toneladas e meia de azeitonas. Fizemos chover azeitonas por Portugal inteiro. Foi um método que resultou muito bem.

Usámos outra técnica que foi montar um género de plataforma em cima da câmara tipo tabuleiro em que íamos vertendo as azeitonas lentamente. Ou eu e toda a equipa técnica com baldes de azeitonas ou eu com a mão à frente da câmara a deixar cair azeitonas. Também era importante ter esse sentido de distância e planos. No primeiro plano, mesmo em frente à lente, a médio plano, cobrir todo o campo visual. Claro que usámos alguma pós-produção para adicionar azeitonas, mas tudo o que é adicionado foi filmado. Mas a chuva de azeitonas é chuva, tanto que no making-of, que penso que está no YouTube (ver vídeo), só se vê nós a despejar azeitonas por todo o lado.

Pensa voltar ao cinema ou quer continuar investir na publicidade? Não gostava de fazer uma longa-metragem?

Eu não gostava: eu tenho que fazer uma longa-metragem ou vou falhar redondamente esta minha ambição de realizar. Espero que seja o mais depressa possível. Já tenho tido algumas propostas e algum interesse, o que para mim é fascinante. Este ano estou disposta a tirar algum tempo para começar a investir nesse sentido porque a minha paixão é o cinema, a publicidade acabou por surgir como uma escola para a realização e foi quase um equívoco perfeito porque me pagam para aprender a fazer o que mais adoro, o que é um privilégio gigante, mas eu espero não me esquecer do objectivo pelo qual entrei para isto que é fazer longas-metragens.

Tem receio de se esquecer disso?

Tenho porque conheço casos de pessoas que ficaram presas à publicidade e se habituam a um certo estilo de vida que a publicidade lhes dá. Mas eu acho que não está na minha personalidade cair nesse erro – posso estar enganada, espero que não. Tenho receio, mas não o suficiente para me impedir de o fazer. Não sou muito boa a criar raízes porque gosto de ter desprendimento suficiente para saltar para projectos desta magnitude sem olhar para trás e sentir que me vou arrepender disso.

“O termo ‘regressar’ é muito definitivo”

No seguimento vem a pergunta óbvia. Neste momento vive em Londres, mas não pensa voltar para Portugal?

Neste momento dizer que vivo em Londres é quase ridículo porque, nos últimos seis meses, o máximo de dias, consecutivos, que eu consegui estar em Londres não passou de cinco. Já estou a “bater na madeira” porque isto significa que tenho tido bastante trabalho e que as coisas têm corrido bem. Eu vou para onde os projectos me levarem. Londres é onde eu moro porque faz sentido para mim, ainda tenho muita coisa para conquistar em Inglaterra. Não quer dizer que se amanhã vier fazer uma longa-metragem para Portugal não volte durante esse período. O termo “regressar” é muito definitivo. Não consigo programar um café com amigas amanhã (risos), quanto mais um regresso a Portugal daqui a um ano ou dois.

Eu gosto desta vida cigana de não saber muito bem para onde estou a ir. Também não sei quanto tempo é que isto aguenta… Se calhar chego a uma altura em que isto me vai cansar. Há tantos sítios… Sempre tive um fascínio gigante por Paris, se surgisse a oportunidade com certeza tentaria ir lá passar seis meses ou um ano. Acho que volto para Portugal se um dia tiver família porque é um país incrível para se estabelecer e se criar família, mas isso não faz parte dos meus planos imediatos. Ainda é cedo para falar nesses termos. Adoro voltar para experiências profissionais em Portugal. Tenho algumas propostas nesse sentido, coisas no ar ainda, mas estou muito fixada em vir cá fazer projectos.

Este ano vou fazer uma curta em Portugal para a SOS Racismo porque me comprometi com eles a propósito dos 20 anos e tenho todo gosto em fazer parte da causa. Tenho mais alguns projectos que gostava muito de ter oportunidade de fazer este ano, mas é sempre difícil garantir porque nunca sei quando é que o telefone vai tocar e quem é que está do outro lado da linha a propor seja o que for.

Como cineasta portuguesa que está no exterior, e que provavelmente consome imenso cinema, como vê o estado do cinema em Portugal e o estado do ensino do cinema nas universidades?

A ideia que eu tenho da indústria em Portugal, seja do cinema ou publicidade, é que falta cooperação entre as pessoas e há uma falta de incentivos geral. Quando se olha para Inglaterra ou França há uma série de medidas que se tomam para incentivar a produção desses países e se as pessoas lutassem no sentido de tentar mudar certos tipos de leis para obrigar à produção nacional e forçar o desenvolvimento profissional dessa mesma indústria, acho que isso daria frutos muito bons.

Teve conhecimento do manifesto que alguns realizadores e produtores escreveram e em que falam de uma “catástrofe iminente” no cinema em Portugal?

Tenho e li essa petição. Tudo isto começa porque os apoios vão sempre para os mesmos e não há grandes apoios para mais ninguém e, não havendo apoios, não há protagonismo para mais ninguém. É muito complicado tentar apoiar com toda a força só estas pessoas, que estão no seu direito de continuar a trabalhar e de ter as vantagens que têm, mas o mais importante é que as pessoas percebam que têm de partir o bolo para outros lados e que há que investir num cinema mais novo.

A maior parte das tentativas em Portugal de criar cinema comercial falham redondamente porque se acha que o cinema comercial é copiar Hollywood mas à portuguesa e sem os meios. Acaba por ser um erro. Quando se vê cinema de países como o Brasil ou México eles destacam-se no cinema mundial por criarem histórias e um estilo muito específicos.

“Há que investir num cinema mais novo em Portugal”

E os estudantes que saem das universidades: estão bem preparados, têm apoios para fazer um filme?

Hoje em dia a realidade é que qualquer pessoa pode ser realizadora. A tecnologia está tão avançada que uma pessoa pode filmar um filme com uma câmara fotográfica e ter qualidade. Para mim um grande filme é uma grande história. Não tem que ter uma componente visual perfeita, nem tem que ser esteticamente perfeito para vingar. Há muitos filmes feitos quase a custo zero. O próprio Tarantino é um óptimo exemplo disso, a um nível diferente, claro. Em Portugal tem que se ultrapassar esse comodismo que faz com que as pessoas esperem que lhes caia tudo do céu, de culpar os outros pelos nossos problemas ou pela nossa falta de entusiasmo.

Em relação à preparação académica: eu não estou muito por dentro do que é feito nos cursos, mas esta semana estive com um produtor de cinema que me dizia que se sentia muito frustrado por ter que ir atrás de estudantes a perguntar se eles querem estagiar com ele. Não são os estudantes que correm atrás dele para saber se podem entrar num filme. Sinto que há esta falta de entusiasmo que tem de ser quebrada. Todos nós podemos fazer projectos e todos nós podemos apostar em desenvolver-nos academicamente. Há uma mistura de falta de entusiasmo com falta de incentivo.

Num cenário hipotético acha que alguma vez conseguiria ter tido a carreira que tem com 27 anos se não tivesse saído de Portugal?

Sinceramente penso que não. Primeiro porque teria entrado neste espírito comodista que penso ser próprio talvez da minha geração ou do ambiente em que cresci. Quanto tinha 18 anos e fui para Londres a dizer que queria ser realizadora, a atitude das pessoas não era de apoio, era de negar à partida o desconhecido e isso é um pouco triste. Por isso é que este anúncio da Oliveira da Serra me apelou tanto porque fala de sonhar e de acreditar na ambição e de acreditar que as coisas podem ser feitas. Foi essa atitude que me fez vingar em Londres. A questão é ir atrás, tentar encontrar as coisas. Todas as pessoas verdadeiramente talentosas que eu admiro e que tive o prazer de conhecer até hoje são, acima de tudo, muito trabalhadoras, pessoas que no dia-a-dia se entusiasmam e trabalham muito para chegar onde estão. Isso é a receita para se vencer.