Todos nós já comemos Tripas à Moda do Porto e saboreamos o peso da tradição da cidade. E, enquanto degustávamos tão típico prato, lançámo-nos em pensamentos (mesmo que em surdina): Mas quem é que se lembrou de elaborar um prato com as vísceras de animais?

Atenta a estas questões, a Casa do Infante iniciou uma série de circuitos gastronómicos, cuja primeira sessão, realizada a semana passada, foi precisamente dedicada a este prato.

Ainda antes da confecção propriamente dita, há que conhecer as origens das Tripas à Moda do Porto. Uma primeira pista é lançada com o quadro “Estaleiros de Miragaia“, de Eduardo Gomes e Álvaro Rocha (1956), que se encontra exposto na própria Casa do Infante.

Na obra em questão pode observar-se a construção de naus que iriam partir para Ceuta em 1415. “Devido à construção da muralha fernandina, houve que transferir a fábrica de navios para o areal de Miragaia [actual localização da Alfândega do Porto]. Segundo Fernão Lopes, este estaleiro naval tornou-se no maior do país”, explica Graça Lacerda, organizadora do circuito. No canto esquerdo do quadro, estão retratados o Infante D. Henrique, Mestre Vaz, encarregado da construção naval, o Bispo do Porto e vários burgueses da cidade.

Ingredientes*

– 400g de feijão manteiga demolhado
– 500g de dobrada de vitela (sola e folhada)
– 1 chispe de porco
– 1/2 de uma mão de vitela
– 200g de presunto gordo
– 200g de salpicão do Douro
– 1/2 de uma galinha gorda
– 1 chouriça de carne
– 2 folhas de louro
– 3 dentes de alho
– 200g de cebola
– sal e pimenta q.b.
– 1 cenoura média
– 1dl de azeite
– 1 colher de sopa de banha de porco
– 1 colhes de chá rasa de colorau
– 2 cabeças de cravinho-da-Índia
– 1 colher de sobremesa rasa de cominhos em pó
*Ingredientes para quatro pessoas, de acordo com a Confraria Gastronómica das Tripas à Moda do Porto

Reza a lenda – uma delas – que foi neste contexto que terão sido criadas as Tripas à Moda do Porto. Segundo a história, o Infante D. Henrique veio ao Porto, em 1415, controlar o andamento dos trabalhos no estaleiro. “Consta que o Infante estava satisfeito, embora um pouco preocupado porque achava que os trabalhadores conseguiriam fazer mais. Confidenciou ao Mestre Vaz que as embarcações serviriam para a conquista de Ceuta e, por isso, era preciso fazer um grande esforço.”

Em resposta, o Mestre Vaz terá assegurado que os esforços seriam aumentados. Decidiu reunir os seus homens, que, por sua vez, falaram com os restantes habitantes da cidade. Em conjunto, decidiram oferecer toda a carne da cidade aos marinheiros. Em terra, ficariam só com as sobras: as tripas.

“Mas nem por isso as pessoas do Porto ficaram a sofrer”, sublinha Graça Lacerda. Inventaram uma maneira de cozinhar as tripas e, com isso, ganharam a alcunha de tripeiros. Na verdade, apesar de existirem, pelo mundo fora, várias receitas que utilizam as tripas, só no Porto é que a alcunha dos nascidos da cidade coincide com o prato típico.

A venda de tripas

Desengane-se quem pensa que a receita que chegou aos dias de hoje é a original. “A receita teve uma evolução ao longo dos tempos, pois o feijão só chegou à Europa no século XVII. Até aí, as tripas eram servidas estufadas em fatias de pão”, ressalva Graça Lacerda.

Através da análise de editais e documentação da época, ficamos a saber que qualquer vendedor de tripas, seja homem ou mulher, tem o nome de “tripeira”. E a verdade é que também na Idade Média existia a preocupação da higiene e limpeza que ainda hoje rodeia este prato. Já na altura eram anotadas as transgressões das tripeiras ou fressureiras e, diariamente, era listada a arrecadação de miúdos de bois.

“A venda de tripas não era permitida em toda a cidade. Cada freguesia da zona histórica teria, pelo menos, dez vendedores que não podiam andar pelas ruas. Para além dos açougues, podia vender-se em locais limpos e arejados.”

À época, o açougue principal situava-se em frente à Sé, dentro da muralha do Bispo, na esquina das ruas das Tendas e da Sapataria. No entanto, cada habitante só podia utilizar o açougue da sua área e não aquele que pretendesse. Ainda há vestígios destes tempos na cidade: No Largo de S. Domingos, no edifício onde hoje se situa o Talho de S. Domingos, podemos encontrar um brasão. Segundo responsáveis pelo próprio espaço, era ali que, durante a Idade Média, se situava o açougue real, que servia o rei quando este se encontrava na cidade.

As lendas

Para além da lenda passada na época dos Descobrimentos, que parece ser aquela que recolhe maior aceitação, existem outras histórias que tentam dar explicação ao nascimento deste prato. Numa outra versão desta mesma lenda, os barcos não iriam para Ceuta, mas sim para Itália, por causa dos casamento do Infante D. Henrique e de D. Pedro.

Tripas à Moda do Porto

A lenda mais antiga data do século XII e refere que o prato terá surgido quando o Bispo do Porto decidiu apoiar a frota das Cruzadas. Uma outra situa a história no Cerco do Porto, em 1832. “Sabe-se que realmente houve vários problemas no centro da cidade e a fome ia crescendo. Como truque para superar a falta de alimentos, as pessoas inventaram a receita dos miúdos porque não tinham carne”, diz Graça Lacerda.

Os dias de hoje e os segredos

Ainda hoje, nos restaurantes da cidade, o mais habitual é encontrar Tripas à Moda do Porto nas ementas à quinta-feira. E porquê este dia? “Na pesquisa, reparei que, segundo um dos estatutos da Associação de Fressureiras do Porto, era às quintas-feiras que elas tinham de pagar a quota semanal. Não sei se será por essa razão”, responde Graça Lacerda.

Já Fernando, responsável pelo Talho de S. Domingos, refere que actualmente a “dona de casa” compra tripas principalmente ao fim-de-semana para refeições familiares, por exemplo. “É um prato de muita fartura”, avisa.

As tripas são compostas pelos folhos, favos e touca. Ao comprarmos, devemos adquirir também uma mão de vitela, um chispe de porco, bem como chouriço, presunto, salpicão e restante charcutaria (ver caixa sobre os ingredientes).

Para lavar as tripas não é preciso grandes floreados, assegura o talhante. “Basta água e sal. Mas têm de ser muito, muito bem lavadas!” E deixa um segredo: “As tripas ficam melhores uma semana depois. Experimentem congelar e servir na semana a seguir.”