Fugiu de casa aos nove anos, apenas com um intuito: encontrar a mãe que nunca conhecera. Desde aí, não soube o que é ser criança. Capturada pelo exército da Resistência Nacional do Uganda em 1984, China Keitetsi (nome que, aliás, foi atribuído pelas tropas) nunca mais de pode separar da sua arma. Para “matar o inimigo”, diziam-lhe.

Sem ninguém, apenas com a natural necessidade de afectos de uma criança, China tentava agradar. “A necessidade de afecto era assumida pelos superiores. Matar alguém era matar o inimigo e ganhar a confiança das chefias”, revelou ao repleto auditório que a escutou, esta quarta-feira, na Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

“Vi morrer os meus camaradas, crianças como eu; perdi a minha família. Mas o pior era o medo do dia seguinte. Quem me vai violar hoje?”, contou.

Vítima de abusos sexuais, acabou por engravidar com apenas 13 anos. Voltaria a ver o filho somente 14 anos mais tarde. Continuou a combater, sem percepção dos riscos que corria. “Não tinha noção do como a minha vida tinha estado em risco. Naquele tempo apenas lutava pela sobrevivência”, confidenciou. O medo não era a morte: “Vi morrer os meus camaradas, crianças como eu; perdi a minha família. Mas o pior era o medo do dia seguinte. Quem me vai violar hoje?”

O instinto de sobrevivência fê-la fugir do país aos 17 anos. Estava grávida. Outra vez. Deixou o filho para trás. “Sinto vergonha por ter fugido sem ele. Por ter andado de arma em punho e matar.”

Uma nova vida

Numa luta para se encontrar a si mesma, passou pelo Quénia, Tanzânia, Zimbabué e África do Sul. Só em 1999 encontrou alguma paz na Dinamarca, ao obter o estatuto de refugiada das Nações Unidas.

Desencontrada dos filhos, a esperança de encontrá-los não saiu lograda. O mais velho já tinha 14 anos quando o reencontrou, doze anos depois de ter abandonado o Uganda. A filha, entregue na África do Sul com um ano, só regressou aos 11. Não os viu crescer, mas hoje tem uma família. Aliás, Aisha, a filha mais nova, com apenas 19 meses, acompanha-a nas conferências que realiza a convite da Amnistia Internacional.

Na verdade, diz, falar é a melhor forma de encarar o seu passado e de mostrar o flagelo que tantas crianças vivem ainda nos dias de hoje. Aos 32 anos, descobriu que afinal é possível libertar-se dos horrores e conquistar uma nova vida. “Nunca se esquece. Às vezes, sinto-me como uma criança que nunca fui; às vezes, como uma velha que não sou. Mas existo. Sou feliz. Comecei outra vida e agora conheço-me. Sou mãe.”