Depois de Sariska, foi para um terreno alternativo. Escolheu a Serra do Montesinho para estudar a relação entre os homens e os lobos.

Sim, comparei como uma civilização europeia cristã se relaciona com o lobo em condições ecológicas semelhantes às de uma civilização hindu que se relaciona com tigres.

Há semelhanças?

Sim. Estive lá menos tempo, mas também em Montesinho nenhum rebanho sai ao monte sem estar responsado para as ovelhas ficarem invisíveis para o lobo.

Como decidiu ir para o Níger estudar leões?

Estava desde ’97 a preparar a história dos leões. Provei que na Ásia se podia viver com tigres, na Europa com lobos, então precisava de provar o maior de todos, o leão, em África. Em 2001, logo que acabei o doutoramento, comecei a procurar onde ir no campus de Montpellier. Falava com estudantes dos Camarões, sítios onde eu sabia que havia gente e leões.

Entretanto uma aluna do Laboratório de Etnobiologia do Musém National d´Histoire Naturelle de Paris tinha chegado do Níger e disse-me que havia aldeias que viviam bem com os leões. Fui para lá e saiu-me a sorte grande também. Nunca tinha sido feito um estudo aprofundado sobre humanos e leões em África. E caí nos gourmantché e também não havia nada sobre eles.

Entrevista:

Tigre de Sariska– “Estive a morrer no Níger”
O antropólogo que procura sociedades felizes
Do Islão à tribo gurjar

Como era viver no Níger?

Muito duro.

Porquê?

É o país mais duro do mundo. Antes de ir ao Níger, eu dizia que a Índia era o país mais duro do mundo ou que lá se podia viajar pelo mundo inteiro. Continuo a dizer que Calcutá é a enciclopédia da vida, que tem todos os mundos lá dentro, mas o Níger é muito duro. É o país mais pobre e mais quente do mundo. Lá é tudo muito complicado, nada funciona. Niamei [capital do Níger] é a cidade onde se abre uma porta e se fica com o puxador na mão.

Depois, quando se chega à aldeia, fica-se isolado para sempre. É uma aldeia da Idade do Ferro, onde há caçadores de arco e flecha e pastores. Onde não há electricidade, nem água potável em algumas épocas do ano. Sem telecomunicações. Não há rede para telemóvel. Sem correio, sem nenhum veículo a motor (não há mota, nem carro). Não se pode sair dali.

Fica completamente isolado…

A três dias, na melhor das hipóteses, do médico. A acrescentar a estas condições estou no meio da savana, rodeado de 200 leões, seis mil búfalos, dois mil elefantes, uma quantidade indeterminada de outros bichos, escorpiões e cobras venenosas.

Ao longo destas viagens todas, tornei-me num viajante profissional. Consigo viver em quaisquer situações e deslocar-me em qualquer sítio. Mas na savana eu tornei-me um comando porque sou capaz de viver com uma arma. Não é uma arma de fogo, é uma espada.

Mas precisa de estar armado?

Tenho de estar sempre armado. Sempre.

Por causa dos animais?

Sim, por causa dos animais. E também para ir ao mercado de bicicleta. Fiz isso uma vez, 70 quilómetros para ir ao Burkina Faso comprar uma manta. Quem vai de bicicleta também pode ser assaltado por salteadores de caminhos que têm arcos e flechas envenenadas ou mauser 22, pistolas alemãs com calibre de guerra.

Mas o que lhe vão roubar?

A bicicleta, a roupa, o que levar no bolso.

Alguma vez se viu em perigo?

Sim, quando estive a morrer.

O que aconteceu?

Fiquei doente. Tive tudo (risos). Vinte e cinco dias de diarreia crónica e três febres tropicais, depois de estar três meses a beber água com colheres de lixívia. Estive a morrer.

“Na savana sou capaz de viver com uma arma.”

Como é que melhorou?

Não melhorei, saí de lá. Disse ao meu intérprete que estava a morrer. Três dias depois, quando cheguei a Niamei, o médico disse-me que eu tinha dois dias de vida. Se tivesse continuado lá o intestino ia colar.

E voltou à aldeia?

Eu queria, mas o médico não me deixou. Voltei em 2004.

Chegou a caçar com os gourmantché?

Sim, 17 dias. 14 quilómetros por dia na savana. Precisava de estudar tudo e a caça é uma das partes centrais da religião gourmantché.

Têm uma religião…

… própria e uma língua própria, mas não têm escrita. Tecnicamente é uma cultura pré-histórica.

Qual é o centro da religião gourmantché?

É uma religião da natureza, em que cada pessoa, animal, planta, árvore, vento ou água, em que todos os seres têm um ser espiritual que é independente do corpo. É outro ser, um gnomo, um homem pequenino com a cabeça muito grande que conduz tudo.

A caça é uma actividade que tem um fim alimentar, mas tem também um carácter espiritual, por isso rezam antes de ir caçar. Durante dois dias prepara-se o veneno para as armas. Durante essa fase são feitas orações aos seres espirituais da floresta para lhes pedir que se tornem aliados dos homens nas jornadas próximas. Por exemplo, não é o caçador que mata um búfalo, é o espírito do rebanho que oferece um búfalo ao caçador. O ser espiritual também vai intermediar com os outros espíritos para que o caçador não seja morto.

Gostava de voltar lá?

Eu vou voltar lá.

Mas gostava de viver lá?

Toda a vida? Gostava. São sociedades felizes. As aldeias de Sariska eram sociedades felizes e os gourmantché são uma sociedade felizes.

Quando volta?

Tenho de voltar. Tenho um projecto para salvar a caça com arco dos gourmantché. Os jovens não caçam, só os maiores de 40, 45 anos é que sabem caçar. É proibido caçar. Agora a caça já é considerada uma actividade cultural, mas é preciso fazer uma zona de caça. Daqui a cinco anos desaparece tudo porque lá as pessoas morrem com 50 anos. E este é dos últimos sítios de África e do mundo onde se sabe tudo sobre caçar com arco e flecha, uma tecnologia que tem 10 mil anos.

É também através dos feiticeiros e caçadores que a religião gourmantché existe. O “grande caçador”, um título honorífico, é que entra em contacto com os espíritos. Além disso, é através das caminhadas na savana que os gourmantché têm conhecimento absoluto do ecossistema, do comportamento dos animais, tudo.

Artigo corrigido às 16h33 de 20 de Maio de 2011