“Estudei vinte anos, praticamente a minha vida toda. Não sei como é não estudar”, afirma Luís Gonçalves. É doutorado em Química, pela Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, e desde pequeno queria ser investigador. O sonho tornou-se realidade no segundo ano da faculdade e, aos 27 anos, Luís dedica-se à investigação no campo da Química Analítica, na mesma instituição.

Marina Vale também gostava de não saber como é não estudar mas, infelizmente, a vida trocou-lhe as voltas. “Sinto falta da escola e adorava”, afirma a auxiliar de ação educativa num infantário – ATL, em Matosinhos. Por falta de recursos económicos, ficou-se pelo 11.º ano e teve forçosamente de mergulhar no mundo do trabalho. Começou num pronto-a-vestir.

Para João, nome fictício, a vida tomou, durante alguns anos, o mesmo rumo mas, mais de dez anos depois, em 2007, fintou o destino e candidatou-se à faculdade. E entrou. Em Geografia, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Esta não foi a primeira vez que tentou a sorte junto de uma instituição de ensino superior. Fê-lo mal terminou o 12.º ano. Na altura, queria estudar Contabilidade, mas foi colocado numa universidade longe de casa. “Os meus pais não tinham possibilidade de me pagar alojamento, transportes, alimentação, todos os extras para quem estuda fora. Então, tive de desistir e de ir à procura de um emprego”, explica João.

Ricardo Faria também partiu à procura de emprego aos 17 anos. “Estudei até ao 9.º ano. Foi opção minha, mas também precisava de ajudar em casa”, diz o jovem que agora, aos 23 anos, trabalha num restaurante.

O que a família tem a dizer

Independentemente do nível académico que conseguiram atingir, todos reconhecem que a família tem um papel importante quando se fala na progressão dos estudos.

Luís diz que sempre houve “um apoio externo”. João conta que, para os pais, “estudar, pelo menos, até ao 12.º ano, era a única alternativa. A partir daí eu podia decidir”. Já Marina e Ricardo não sentiram o mesmo apoio. Em casa da auxiliar de ação educativa, a educação não era vista como uma prioridade: o irmão tem o 6.º ano, a mãe o 4.º e o pai a 3.ª classe incompleta. “Trazia as notas, esforçava-me, mas sentia-me triste porque não reconheciam o valor do estudo”, recorda. Ricardo diz que não se sentia apoiado pelos pais porque “se calhar, preocupavam-se só com os problemas deles e o estudo ficava à parte”. “Acho que a falta de apoio em casa pode ser um dos principais motivos para se deixar” a escola, acrescenta.

Nuno C. Sousa, psicólogo, psicoterapeuta e psicanalista, salienta a relevância do apoio familiar na educação. Mas, para o psicólogo, mais importante do que os conhecimentos académicos que se cruzam no nosso percurso escolar, é a consciência do mundo que se adquire. “A maior vantagem é a perspetiva sobre os vários assuntos que fazem parte da vida do ser humano. [Estudar] alarga o espetro de pensamentos de uma pessoa e desafia-a a desenvolver as suas capacidades internas para explorar novos ambientes”.

João teve literalmente de explorar um novo ambiente quando, aos 33 anos, se sentou pela primeira vez como aluno num anfiteatro de uma universidade. Depois de alguns anos a adiar o sonho, a força de vontade sobrepôs-se ao receio de não ser capaz de acabar o curso. “Não sabia até que ponto seria capaz de retomar o ritmo de estudo contínuo, pesquisar de forma intensiva, fazer trabalhos de grupo”, confessa. Mas nessa odisseia de três anos, entre mapas, e às voltas com o ordenamento territorial, João diz que a geração que o separava dos seus colegas não constituiu problema. “Eu tive sorte com as pessoas que encontrei, com o grupo de trabalho e de amigos que criei”, concretiza. Os pais ficaram contentes com a sua opção.

A entrada tardia do João na faculdade pode ser vista como um ato de coragem, mas não é um caso isolado. “Atualmente, na Universidade do Porto, temos imensos reingressos, sobretudo a partir da entrada em vigor do processo de Bolonha. Há um maior número de pessoas a voltar ou a entrar um pouco mais tarde nas universidades”, refere Maria de Lurdes Correia Fernandes, vice-reitora da Universidade do Porto.

Casos de discriminação indireta

No que respeita a situações de discriminação em função das habilitações académicas, Miguel Barradas Lourenço, advogado, nunca se deparou com casos de litígio. A discriminação pode não chegar aos tribunais, mas há quem já a tenha sentido.

“Discriminação direta, não”, refere João. “Mas percebe-se que há portas que estão fechadas só pelo facto de só ter o 12.º ano”. Agora, com a licenciatura em Geografia – opção em que tentou aliar o gosto pessoal a possibilidades de progressão na carreira – a situação não se alterou muito. “Com a crise económica atual, ter uma licenciatura ajudou-me apenas a progredir nas minhas qualificações, mas ao nível profissional não houve essa progressão. Acho que é um mal geral”, conclui.

Marina conta que quando trabalhava no pronto-a-vestir e tinha de falar inglês – uma das suas disciplinas preferidas – com clientes estrangeiros, todos se surpreendiam. “Quando me disponho a fazer qualquer coisa, as pessoas passam logo um atestado de incompetência, por não ter o 12.º ano”, lamenta.

Já Luís sente que tem uma “enorme vantagem, especialmente na área de Ciências” e o apoio familiar que sempre sentiu reflete-se na sua vida. “Ter o doutoramento em Química permite-me arranjar emprego em vários países”, refere.