“Aqui posto de comando das Forças Armadas. As Forças Armadas portuguesas apelam as todos os habitantes da cidade de Lisboa no sentido de recolheram a suas casas, nas quais se devem conservar com a máxima calma”, lia Joaquim Furtado ao microfone do Rádio Clube Português (RCP). Mas o povo não obedeceu e saiu para a rua, unindo-se aos militares que davam forma aos seus 48 anos de descontentamento e lutavam pela liberdade.

Uma revolução com poucos dias de aviso

A 25 de abril de 1974, Portugal mudou. A partir daquela quinta-feira foi possível pensar, falar e escrever livremente. A guerra colonial acabou, os presos políticos foram libertados e as eleições passaram a ser livres. Uma liberdade que chegou também às redações da rádio, que se aliaram aos militares na sincronização das operações do golpe de Estado, através da transmissão de senhas e comunicados. Embora informadas com pouca antecedência, ou mesmo surpreendidas como qualquer outro cidadão, nas cabines de locução ou em reportagem, foram várias as vozes que mostraram aos cidadãos que já não era preciso terem medo de ser livres.

A importância da rádio

João Paulo Diniz trabalhava, na altura, nos Emissores Associados de Lisboa e no Rádio Clube Português e só no dia 22 tomou conhecimento da importante missão que lhe viria a ser entregue. De um abraço a Otelo Saraiva de Carvalho, que já não via desde 1972, na Guiné, nasceu a responsabilidade de transmitir o primeiro sinal da revolução. Zeca Afonso foi o nome que, inicialmente, cruzou a mente de Otelo quando se tratou de impulsionar a liberdade, mas João Paulo não estava de acordo e, às 22h55, foi a voz de Paulo de Carvalho, com “E depois do Adeus“, que fez arrancar as tropas que ajudaram na despedida à ditadura.

Apesar de assumir o compromisso, o peso da responsabilidade levou, no entanto, João Paulo a abordar Otelo: “Se isto correr mal, como é que é?”, questionou. Mas a assertividade descontraída do amigo tranquilizou-o e as coisas correram bem.

A Rádio Renascença também teve um papel importante no triunfo da democracia. Manuel Tomaz, em conjunto com Leite de Vasconcelos, Carlos Albino e Marcel Almeida, da meia noite às 02h00, preenchia a antena com o programa “Limite”, procurando ser contundente e agitar a mentalidade dos cidadãos mais passivos. Os objetivos dos jornalistas, coincidentes com os dos militares, fizeram do “Limite” o espaço ideal para a transmissão da segunda senha da revolução. Agora sim, Zeca Afonso, com “Grândola Vila Morena“.

À 00h20 lia-se na cabine da Rádio Renascença a primeira quadra da canção que, quando toca, acelera o coração de todos os que assistiram e participaram no golpe de Estado. As horas anteriores foram de alguma ansiedade e adrenalina. Na tarde do dia 24, Carlos Albino, que, por intermédio de Álvaro Guerra, jornalista do diário “República”, e este, por sua vez, contactado por um oficial da Marinha de Guerra, Almeida Contreiras, estava a par dos planos de Otelo Saraiva de Carvalho, expõe a Manuel Tomaz a estratégia do comandante das Forças Armadas, numa caminhada até à Igreja de Alvalade. Nos bancos da igreja definiu-se o disfarce da Grândola, que seria incluída numa rubrica de poesia com poemas de Carlos Albino e sonoplastia de Manuel Tomaz. A locução ficou a cargo de Leite Vasconcelos, que leu sem saber estar a dar voz a uma senha de uma revolução. “Não lhe disse que aquilo era a senha. Disse só que era interessante ele destacar aquela quadra e, portanto, ele assim fez”, conta Manuel Tomaz.

As mudanças na rádio

Adelino Gomes, co-autor espontâneo da reportagem da Rádio Renascença no dia 25, considera que os jornalistas que transmitiram as senhas não sentiram muita emoção, porque sabiam muito pouco sobre o que estava a acontecer. “Ninguém lhes disse: Vais pôr uma senha porque vamos fazer um golpe de Estado”, explica. Foi o que aconteceu com Leite de Vasconcelos. “Nem ficou chateado, ficou só com pena que não lhe tivesse dito, mas percebeu”, descreve Manuel Tomaz.

Aos comandos da madrugada

As horas avançavam ao ritmo dos militares. Ainda não eram quatro da manhã e, além das rádios, a RTP e o aeroporto de Lisboa já tinham sido ocupados. O cerco ao Quartel do Carmo, onde se presumia estarem Marcelo Caetano e Américo Tomás, seria iniciado ao meio dia.

26 minutos depois das 04h00, no RCP, Joaquim Furtado, que estava de serviço nessa madrugada, protagonizava um momento marcante: a leitura do primeiro comunicado das Forças Armadas que, embora não muito explícito, procurava acalmar a população.

Às 03h12, o Rádio Clube Português foi ocupado por oito militares, uma ocupação que se justifica pelo objetivo de alcance da rede e pela autonomia de difusão, com recurso a um gerador. Joaquim Furtado foi surpreendido por um deles num pequeno gabinete onde preparava os noticiários. Já no corredor, encontrou “outro militar, o capitão Santos Coelho”, que o informou “que era militar de um movimento que queria derrubar o regime, acabar com a prisão, com a guerra e fazer eleições livres, como constava no programa das Forças Armadas”, recorda.

À semelhança das outras redações, havia no Rádio Clube Português “um ambiente de expectativa pela falta de informação e vontade de que as coisas corressem bem”, conta Furtado.

Tudo isto se passava enquanto Luís Filipe Costa, chefe de redação do Rádio Clube Português, lia, tranquilamente, em casa, com o rádio desligado. A notícia de que algo se passava chegou-lhe pelo telefone. Do outro lado da linha, um camarada questionava o porquê de tantas marchas militares. Estranhando o alinhamento, o jornalista telefonou para a redação, conseguindo falar com Joaquim Furtado. “Tivemos uma conversa mais ao menos cifrada”, conta Luís Filipe Costa. Mas foi o suficiente para o chefe de serviço desvendar uma situação anormal e obter autorização para entrar na redação, onde agiram profissionalmente. Os militares tinham levado uns comunicados que seria o capitão Santos Coelho a ler, mas a falta de preparação aos comandos de um microfone fê-lo entregar a missão a Joaquim Furtado. “Quando li não estava a ser jornalista. Tomei posição do lado da democracia”. “Li no tom que me pareceu mais adequado. Procurei que o texto parecesse um comunicado”, acrescenta.

Nove horas a reportar a liberdade

Adelino Gomes esteve, por iniciativa própria, uma vez que já não trabalhava na rádio, nove horas a acompanhar a coluna do ex-colega de liceu, Salgueiro Maia. “Pedi-lhe para nos [a Adelino, Pedro Laranjeira e Paulo Coelho da Rádio Renascença] deixar acompanhá-lo e ele mandou esvaziar um dos veículos militares para os jornalistas”, relata. E, em cima de um Unimog, com um microfone na mão, testemunhou e reportou os vivas à liberdade, que, mais tarde, viriam a ser compilados num duplo álbum de 120 minutos, e que só foram transmitidos no dia 27. “A reportagem em que eu participei foi em diferido, mas para mim era em direto e eu falei como se estivesse em direto”, recorda Adelino Gomes.

À rádio, a liberdade chegou devagar, por vezes sem avisar. Causou ansiedade e expectativa pela falta de informação com que se fez acompanhar. Mas, atrás dos microfones, foi sentida em direto por quem lhe emprestou a voz e as emoções.