A 25 de abril de 1974, Manuela de Melo era uma jovem jornalista na RTP. Nesse dia dormia quando foi acordada por uma amiga. “Não sabia nada do que se estava a passar, quem estava a fazer o quê, mas fui a correr para a RTP”, recorda. Por essa hora já António Vidal fazia a transmissão do seu habitual programa da manhã no Rádio Clube Português (RCP), o ‘Amanhecer’. António ficou a saber da revolução quando recebeu ordens de Lisboa para cortar a emissão. “No fundo já sabia, porque quando tinha chegado já andava gente aos saltos e a beber uns copos, todos satisfeitos”, partilha o antigo jornalista da RTP.

Naquele dia, a felicidade era contagiante. Até o guarda da noite do RCP se deixava levar pela euforia. António lembra-se perfeitamente do momento: “Quando cheguei de manhã, o guarda da noite dava cambalhotas e mortais no sofá do diretor geral”. Já na RTP, Manuela ainda não sabia muito bem o que se estava a passar. De resto, ninguém parecia saber. Ao fim da manhã, as Forças Armadas chegaram para tomar o centro da RTP no Monte da Virgem. “Estavam atrasados, nós até pensamos que ninguém queria saber do Porto para nada”, lembra, sorrindo.

O atraso vinha do RCP. António recebia os ‘rangers’, vindos de Lamego. Chegavam para tomar a rádio, ocupada pela GNR. Depois tinham também que ir tomar a televisão. E foi precisamente o jornalista que conduziu os militares até à RTP. “Nem sequer sabiam o caminho para a televisão, portanto eu fui à frente com o meu carro para os levar lá”, conta.

“Havia uma crença muito grande de que aquela situação não se podia manter”

Mas nem todos esperavam ver um grupo de homens armados entrar pela televisão. “Existem imagens de uma empregada aos berros quando as tropas entraram na RTP”, recorda Manuela. António e Manuela tinham recebido ordens para ler o comunicado do Movimento das Forças Armadas (MFA) ao país. Era a primeira transmissão da RTP em direto, a partir do Monte da Virgem. Manuela explica por que foi o Porto o primeiro a transmitir: “Só depois do emissor de Monsanto ser tomado pelas Forças Armadas é que Lisboa conseguiu começar a transmitir e, por isso, muita gente não sabe que o Porto foi o primeiro a transmitir no 25 de abril”.

Durante a tarde, foram alternando para transmitir uma mensagem de tranquilidade ao país. Mas sobretudo de mudança. A esperança tornou-se uma realidade naquele dia. Manuela já acreditava numa mudança. “Havia uma crença muito grande porque havia a noção de que aquele tipo de situação não se poderia manter. Era contra o que se passava na Europa e contra a vontade de uma parte significativa do povo português”, reflete.

“Não sabíamos se estávamos a dar a cara e à noite íamos presos”

Era um dia recheado de emoção. E muita tensão. António ainda não conseguia perceber o alcance do acontecimento. A tentativa de golpe militar das Caldas da Rainha, a 16 de março de 1974, deixava antever uma tentativa de mudança mas, para António, nada era certo. “Nós não sabíamos se estávamos a dar a cara e à noite íamos presos por colaboração com uma tentativa de revolução, havia uma tensão muito grande.” A incerteza e a tensão ainda imperavam quando o MFA libertou “um povo amordaçado”, nas palavras de Manuela.

O jornalismo também mudou naquele dia, inevitavelmente. Na opinião de Manuela, o que se fazia antes do 25 de abril “nem se podia chamar de jornalismo”. De um momento para o outro, liberdade passou a ser palavra de ordem. António recorda bem a “loucura” que foram esses tempos. “Toda a gente queria falar e dar a sua opinião, toda a gente queria aparecer e mostrar as más condições em que vivia. As pessoas já não tinham medo, e isso foi muito importante.”

Para Manuela, o fator crítico do regime salazarista estava prestes a mudar. “O mais grave daquele regime era o facto de estarmos fechados ao que se passava no mundo, e ainda hoje pagamos essa fatura, porque a Europa evoluiu imenso no pós-guerra e nós ficamos parados no tempo.” A televisão tornou-se, com a mudança, um meio ideal para transmitir uma nova mensagem, uma nova esperança.

“As pessoas criaram uma ligação muito forte com a RTP”

“As pessoas criaram uma afetividade muito grande com a televisão, sobretudo porque tinha imagem”, anuncia Manuela. As pessoas podiam ver o que se estava a passar, algo que transformou a televisão num meio privilegiado. Tal como Manuela, António Vidal sentia-se um protagonista. “Os meus amigos foram todos para minha casa e, durante quase dois dias, estiveram por lá e iam telefonando para saber o que se estava a passar.”

O que se seguiu foi o início de um novo país. Um país que falava e discutia os problemas. “A nível profissional, o ano que se seguiu foi muito marcante.” Manuela conta como havia uma necessidade de deixar falar as pessoas, de mostrar o que se passava no país. O trabalho nesses tempos era estimulante e andava de mãos dadas com a perspetiva de uma nova realidade. “Havia muita alegria no ar, foram dias inesquecíveis”, são as palavras de António, que partilha um pedaço da história do país como seu.

Hoje, ambos olham para esse dia e para esse ano como um símbolo de mudança. Com alguma saudade, também. “Eu acho que todos as pessoas deviam passar por um momento daqueles”, solta António, quase em jeito de conselho. Manuela sente-se uma privilegiada. “Às vezes pergunto-me se, passados tantos anos, não estarei a mistificar um pouco aquele momento?” A pergunta é imediatamente substituída por uma resposta: “Acho que não, mantenho uma ideia muito clara daquilo, é uma imagem muito forte, muito forte mesmo”.