Hugo Cardoso tem 37 anos e possui um currículo invejável. É docente na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e especialista em antropologia forense. Por outras palavras, trabalha com identificação humana a partir do esqueleto, – “aquilo que sempre quis fazer”. Já passou pela unidade de antropologia forense do Office of the Chief Medical Examiner em Nova Iorque, e pela Forensic Science Academy do Laboratório de Identificação Central das Forças Armadas Americanas,e pelo Museu Nacional de História Natural (Lisboa), e está, desde 2007 na Delegação do Norte do Instituto Nacional de Medicina Legal (Porto). A docência é a outra paixão na vida deste jovem que garante: “para o sucesso profissional é fundamental reservar bem o espaço da vida pessoal”.

Fez licenciatura em Lisboa, mestrado em Coimbra e doutoramento no Canadá. O seu percurso académico seguiu alguma lógica definida a priori?

Não, sinceramente não. Aliás quando eu comecei o meu curso em Lisboa o meu objetivo era fazer especialidade em biologia marinha. Embora a antropologia num sentido mais lato sempre tivesse sido aquilo que eu gostaria de fazer, na minha decisão inicial de ir para o curso de Biologia, a biologia marinha foi um ponto de referência bastante importante. Depois, a meio do curso alterei um bocadinho a minha via curricular. Logo de seguida fui fazer o mestrado de Antropologia biológica em Coimbra e, depois de acabar o mestrado, com incentivo da minha orientadora, resolvi dar o passo seguinte e fazer doutoramento na área da antropologia, muito voltado para a chamada biologia do esqueleto (bioarqueologia), o estudo dos ossos humanos.

E como surgiram, então as ciências forenses?

Surgiram no sentido em que são uma das aplicações daquilo a que chamamos a biologia do esqueleto humano. Esta área sempre teve grande importância não só em termos daquilo que é a investigação atual, mas também em termos da história da própria antropologia biológica: o estudo do esqueleto humano enquanto fonte de informação em relação aos nossos antepassados (através de vestígios fósseis de ossos e dentição), e das populações mais recentes (através de esqueletos que são escavados de cemitérios). Esta sempre foi uma parte importante da minha investigação e da minha área de interesses. O contributo para o contexto médico-legal tem a ver com a identificação de vítimas e a identificação da causa da morte quando o cadáver já está irreconhecível ou em avançado estado de decomposição. Nesse contexto, o médico legista, que normalmente confirma a identificação e a causa da morte, trabalha em conjunto com o antropólogo com formação em biologia do esqueleto.

O interesse culminou quando me mudei para o Porto, em 2007, na oportunidade de aplicar estes conhecimentos, colaborando efetivamente com a Delegação do Norte do Instituto Nacional de Medicina Legal.

Durante o seu percurso qual foi o trabalho que lhe deu mais gosto fazer?

Pensando retrospetivamente, aquilo que eu faço hoje posso considerar que foi aquilo que eu sempre quis fazer. Sou uma pessoa com muita sorte nesse sentido, porque consigo trabalhar naquilo que gosto, e quase que até nem vejo o meu trabalho como trabalho. Como investigador, posso dizer-lhe que uma fase importante da minha carreira foi o doutoramento. Deu-me muito prazer: houve fases complicadas, com os seus dissabores, mas a fase final, a concretização e a satisfação em ter feito um bom trabalho fazem com que, tendo de identificar algum trabalho que fiz em concreto, seja esse.

Nunca pensou em ficar-se por uma carreira internacional e não voltar a Portugal?

Sim, pensei várias vezes, aliás, posso dizer que o facto de eu estar hoje em Portugal foi quase acidental e tem a ver com questões pessoais. Eu conheci a minha mulher, pessoa com quem vivo hoje e de quem tenho dois filhos, pouco antes de terminar o doutoramento e provavelmente se não a tivesse conhecido não estaria cá.

Acha que a antropologia forense não está muito desenvolvida no nosso país?

Está bastante: há muita e boa investigação feita nessa área. Não somos muitos, mas estamos ao nível de qualquer outra parte do mundo. A opção não teria a ver com a qualidade da investigação que se faz, mas com as oportunidades que existem para os investigadores poderem dedicar o seu trabalho à investigação e à docência. Infelizmente não há muitas oportunidades, e quando eu acabei o doutoramento a perspetiva de essas oportunidades serem poucas é que me fez pensar em não ficar cá ou mesmo não voltar.

Se bem que têm havido algumas alterações e as coisas vão acontecendo, mas se calhar não com a facilidade que nós gostaríamos. Vendo como as coisas funcionam lá fora, depois temos uma perspetiva diferente.

“A investigação criminal vai depender muito daquilo que o perito conseguir determinar”

Esta ciência é conhecida pelo público em geral, muitas vezes, devido à serie norte-americana “Bones”. O que se passa lá é pura ficção ou há semelhanças com a realidade?

A série “Ossos” tem o benefício de despertar o interesse para a área, e isso só por si é bom, mas depois também o seu lado menos positivo. Algumas coisas que são transmitidas na série podem estar próximas daquilo que é a realidade, mas na maioria dos casos o contexto em que elas ocorrem está puramente no campo da ficção. Usei até um episódio dessa série para uma aula minha, para mostrar aquilo que não é antropologia forense. Por exemplo, na série, um dos meios mais usados para a identificação de indivíduos é a reconstrução facial e, na verdade, esta reconstrução facial é dos métodos de identificação forense mais falíveis que há e só em último recurso é utilizado. Para apelar ao público, a forma encontrada foi esta de usar a tecnologia e mostra uma técnica que é mais espetacular, mas depois não corresponde ao que acontece. As séries transmitem a experiência nestes campos de atuação, como sendo relativamente fácil, devido a técnicas muito avançadas que permitem chegar às respostas, o que não acontece quando se trabalha nesta área.

No dia-a-dia quais são então as técnicas mais utilizadas?

Na prática a antropologia forense é uma ciência muito pouco tecnológica. As ferramentas assentam muito no olho humano, numa lupa para ajudar a ver em mais pormenor, em algumas ferramentas para medir ossos, na radiografia, em amostras comparativas. A observação e a quantificação de estruturas é a forma que temos de chegar às respostas que pretendemos (quem é o indivíduo, quais as circunstâncias da morte).

Quais foram, para si, os casos mais complicados de resolver?

Os casos mais complicados são sobretudo quando chegam até nós restos humanos em muito mau estado de conservação e não existe material suficiente para fazermos reconstrução de identidade como nós gostaríamos, dando a informação mais completa possível. Quando não é possível, por exemplo, fazer uma estimativa da idade com segurança, não conseguimos identificar o indivíduo e isso deixa-nos com alguma frustração. Muitas vezes pode até haver suspeitas de morte criminosa e é necessário um exame muito cuidado, porque há que despistar alterações no esqueleto do indivíduo que, para um olhar treinado, podem apontar para um ferimento por arma de fogo, ou podem indicar que aquele esqueleto esteve algum tempo em determinante local e por isso está muito degradado, por exemplo.

É um trabalho de grande responsabilidade porque a investigação criminal vai depender muito daquilo que o perito conseguir determinar. Em termos sociais trata-se de devolver a identidade a indivíduos que, muitas vezes, estão desaparecidos há anos, e permitir que a família faça o seu luto.

“Espero continuar a fazer investigação em Portugal”

E a nível de investigação, em que projetos está envolvido actualmente?

Neste momento o mais importante é um projeto que submeti à Fundação para a Ciência e tecnologia e que começou no ano passado. Trata-se de um projeto na área da antropologia forense que pretende contribuir efetivamente para aquilo que são as ferramentas da antropologia forense no campo da identificação de cadáveres esqueletizados e da determinação da causa da morte, construindo duas coleções de material ósseo. A base são esqueletos humanos portugueses, em contexto moderno e identificados que serão fundamentais para a fiabilidade de algumas técnicas de reconstrução de identidade, por exemplo. Hoje em dia, estas técnicas são bastante questionadas porque estão baseadas em coleções de esqueletos mais antigas, que podem não refletir a variabilidade biológica humana atual, complicando o processo de identificação.E uma coleção deste género não tem apenas importância para o contexto forense, mas também para o contexto paleontológico. São coleções de grande importância para quem estuda a evolução humana.

Quais são as suas perspectivas de futuro?

Sinceramente eu espero poder continuar a fazer investigação em Portugal. Embora em termos económicos e financeiros o nosso país esteja um pouco difícil, espero que as coisas possam mudar e que o panorama futuro possa mudar para toda a gente, e, em concreto, para a investigação. Mas também não posso ser demasiado otimista, até porque a minha ligação com a faculdade de medicina é uma ligação mais ou menos efémera (sou professor auxiliar convidado), e a longo prazo não sei muito bem como será o meu futuro. Eu estou habituado a viver apenas na expetativa do curto e médio prazo, tem sido sempre assim. Portanto, acabo por não ter muitos objetivos a longo prazo, mas a curto prazo espero continuar a fazer aquilo que estou a fazer agora, e conseguir levar a bom termo o projeto financiado pela FCT.

Como é que gere a vida pessoal no meio de tanto trabalho, investigação, tanta responsabilidade?

Às vezes não é muito fácil, mas eu procuro ser mais ou menos rígido, no sentido em que o trabalho só comece à porta do trabalho e a família só à porta de casa. Procuro separar bem as duas coisas. Isso reflete-se na qualidade do trabalho. Se eu não puder estar bem na minha vida pessoal isso não se vai refletir de boa forma na profissional. Pelo menos eu sou assim, e preciso de viver assim.

Que conselho dá aos jovens que queiram iniciar uma carreira na área da investigação?

Acho que, se é isso que querem, fazem muito bem. A ciência é uma área em que tem de se investir cada vez mais. O nosso mundo atual depende muitíssimo da ciência e da tecnologia e da literacia em ciência e tecnologia (sabermos o que representam, o que nos dão e quais são as suas limitações e problemas). Quem decide enveredar pela área das ciências tem de perceber se realmente é uma coisa que gosta porque gostar daquilo que está a fazer é o primeiro passo. Depois, é preciso trabalhar bastante porque assim as coisas vão acabar por surgir com o tempo. Podem ser difíceis: muitas vezes nesta área, sobretudo para quem faz exclusivamente investigação científica, o caminho pode ser bastante complicado e longo. Mas com trabalho, com vontade de aprender sempre, e estando aberto a novos conhecimentos e a alargar horizontes, as coisas conseguem-se. É esta abordagem que deve ter quem quer trabalhar em ciência, no fundo porque a ciência é esta procura incessante por conhecimento, logo, quem não sente esta curiosidade não faz sentido estar a fazer ciência.