A imposição de limites à liberdade de manifestação e o uso excessivo de força policial têm provocado a maior série de manifestações turcas desde que o primeiro-ministro daquele país, Trecep Tayyip Erdogan, chegou ao poder, em 2002.

“Todo o mundo fala de uma Primavera Árabe, mas nós não somos árabes. Apenas nos cansamos”, diz, ao JPN, Mehmet Gaga (nome fictício escolhido pelo entrevistado), um jovem turco de 25 anos a estudar em Istambul. “Há algumas semelhanças com os protestos árabes, mas esta não se trata de uma ‘Primavera Turca'”, acrescenta Bahadir Unal, outro jovem turco: “Ainda há oposição partidária, oposição por parte das televisões e jornais, por parte de organizações não-governamentais, companhias privadas, instituições democráticas e formas de desafiar o Governo. Apesar dos problemas, a Turquia tem uma democracia estabelecida”. Gaga rejeita a comparação feita com os países vizinhos, dado o facto de não se enquadrarem nos padrões culturais do mundo árabe. Salienta, ainda, a modernidade do país onde vive.

“Esta revolução foi, em primeiro lugar, contra o projeto de construção de um centro comercial na Praça Taskim, mas agora tornou-se numa luta ideológica. À medida que o Governo se foi tornando cada vez mais ditatorial, as pessoas foram-se tornando cada vez mais revoltadas”, conta Mehmet. Bahadir concorda e acrescenta que “a mensagem que a sociedade quer passar para o Governo é clara: ‘Respeitem a minha opinião, a minha liberdade de expressão, respeitem o meu estilo de vida'”.

Anti-terrorismo

São 49 os jornalistas presos na Turquia, 45 no Irão e 32 na China, números avançados pelo Comité para a Proteção dos Jornalistas, em dezembro. Contudo, em março, a organização Repórteres Sem Fronteiras apresenta 75 jornalistas como encarcerados na Turquia, ato que quebra as leis de anti-terrorismo no país. No entanto, desde 28 de maio, já foram presos 1700 manifestantes e, de acordo com a Amnistia Internacional, contabilizam-se três mortos.

Na noite desta segunda-feira, os manifestantes voltaram às ruas e, depois de o presidente turco, Abdullah Gul, ter assumido a legitimidade dos protestos como forma de fazer democracia, o vice primeiro-ministro, Bulent Aric, pediu desculpas e afirmou ter disponibilidade para negociar com os manifestantes. “Apenas exigimos democracia”, afirma Mehmet Gaga. “Se isto continuar, o Governo provavelmente cairá, à medida que as manifestações se alastram por toda a Turquia e não só Istambul”, continua. Bahadir não é da mesma opinião: “Na última eleição tiveram mais de 50% dos votos, tiveram grande apoio por parte da sociedade. Na minha opinião, se Erdogan e o Governo tiverem atenção à opinião pública, a Turquia vai voltar ao normal”, partilha com o JPN.

A posição conciliadora de Bulent Aric surge depois do encontro que este teve com o presidente, dada a ausência de Erdogan, em visita pelos países do norte de África: “O que fez derrapar as coisas foi a utilização de gás lacrimogéneo pelas forças de segurança, por uma razão ou por outra, contra pessoas que tinham exigências que inicialmente eram legítimas”, disse Aric, de acordo com a AFP.

Desde sexta-feira passada, de acordo com a Associação de Médicos da Turquia, somam-se já 3195 feridos dos manifestos, 26 em situação crítica. “Em Istambul, a polícia está a lutar com a população. Ele deitam tanto gás lacrimogénico sobre nós. Mas nós resistimos sem magoar a polícia”, diz Mehmet Gaga, ao JPN.

O conflito

Os protestos na Praça de Taksim, em Istambul, contra a construção de um centro comercial e de uma caserna do Império Otomano num dos já escassos espaços verdes da cidade, o parque Gezi, transformaram-se em contestações políticas. As medidas de Erdogan, primeiro-ministro turco, e do seu partido islâmico, são consideradas, por uma fação mais moderada, como atentados à liberdade.

Assim, na sexta-feira, 31 de maio, as cidades de Istambul, Ancara e Esmirna pintaram um cenário de confrontos, pedidos de demissão do Executivo e violência entre os manifestantes e o corpo policial. “Isto já não é só por causa das árvores, é sobre a pressão exercida por este Governo. Estamos fartos, não gostamos da direção que este país está a tomar”, afirma, em comunicado à Reuteurs, Mert Burge, estudante de 18 anos.

Leis sobre aborto e cerveja foram rastilho

O descontentamento surge na sequência de um conjunto de medidas. De acordo com Mehmet Gaga, “enquanto o Governo foi ganhando poder, foram sendo impostas regras sem que a população ou os partidos fossem consultados”. Refere, a título de exemplo, a proibição do aborto ou o impedimento de comprar cerveja, depois das 22h.

Tanto em Istambul, como em Ancara, a polícia recorreu à força para dispersar os grupos de manifestantes. Deste confronto resultaram 12 feridos, entre os quais um deputado pró-curdo e um fotógrafo da agência Reuters. A revolução é “civil” e tem contado com a participação da maioria da população: “Tenho um amigo que, até aos protestos do Gezi Park, era completamente desinteressado no que diz respeito a política e nunca tinha estado envolvido em conflitos com a polícia. Agora, como milhares de outros na Turquia, tornou-se num guerreiro, com óculos à volta do pescoço, uma máscara de oxigénio na cara e uma garrafa de solução anti-ácido na mão”, afirma Bahadir.

No mesmo dia, no Parlamento, a oposição acusava o Executivo de violar as liberdades individuais aquando da aprovação de uma lei que prevê restrições ao consumo, venda e publicidade de bebidas alcoólicas. A lei foi aprovada invocando a saúde dos cidadãos, argumento contestado pela oposição, que alega motivos religiosos por detrás da decisão. Mehmet Gaga afirma que o “Governo usa o islamismo para manipular um povo que é mairitariamente islamita”. “A maioria da sociedade está contra estas leis que, não sendo vitais, são exemplos muito simples da perda de liberdade”, acrescenta Bahadir Unal. A sociedade pensou que estava a perder a liberdade. Ainda que a maioria turca seja islâmica, o país é considerado moderado. Contudo, a oposição acredita que esta medida representa uma tentativa de imposição do sistema islâmico.

A 1 de junho, o presidente Abdullah Gul ordenou a retirada das forças policiais da Praça de Taksim, medida festejada pelos manifestantes durante a madrugada de domingo. Embora a notícia fosse positiva, a noite foi violenta. Os manifestantes tentaram entrar nos edifícios dos gabinetes de Erdogan, em Ancara e Istambul, ato que provocou uma resposta policial baseada em gás lacrimogéneo e canhões de água, refere a agência noticiosa francesa AFP, ao citar Anatolia, agência de notícias turca.

Em resposta, os protestantes atiraram pedras, partiram semáforos e montras de algumas lojas, incendiaram carros e deram voz a comentários hostis ao Executivo. Face à dimensão da manifestação, Erdogan concordou com a retirada das forças policiais, mas não abdicou do plano para o parque Gezi na Praça.

Vídeo de João Brandão/P3