Nelson Mandela foi o primeiro presidente negro da África do Sul e o líder histórico do Congresso Nacional Africano (CNA, em português; ANC, em inglês). O carisma inerente e a luta anti apartheid, pela libertação da África do Sul, abriram-lhe caminho. Um caminho custoso que lhe valeu quase três décadas de vida enclausurado.

Conseguiu superar o ódio, tranquilizar brancos e negros e construir um novo país, com base na igualdade e na unificação. Mas não esteve no poder mais do que um mandato: ao fim de cinco anos deixou a presidência e a liderança do ANC para dar oportunidade a uma nova geração de políticos. Uma mensagem para os déspotas que se perpetuavam no poder e um exemplo para várias gerações de dirigentes.

Acima de tudo, conseguiu o respeito de todos. Hoje, não há dúvidas de que a mensagem de Mandela chegou ao povo sul africano e que foi o respeito que partilham pela figura do líder que mais os uniu, como exemplifica António Pina. Mesmo quando, em 2004, antes de completar 86 anos e cansado, Mandela decidiu retirar-se dos atos públicos. Mesmo quando esta quinta-feira, 5 de dezembro, faleceu.

O ANC vive, “neste momento, uma crise de credibilidade muito grande”

António Pina é jornalista e está na África do Sul desde 1990. Rumou ao país, “pela aventura”, na altura exacta em que Mandela era libertado. Desde então, foi correspondente de orgãos como a SIC, a TSF e a Agência Lusa. Para este último trabalhou 12 anos, até março deste ano. Não deixou o país que o acolheu.

Memória de Mandela

António tem de Mandela “a melhor das ideias possíveis”: “É dos homens no mundo que mais consensos cria. Não se lhe aponta rigorosamente nada”, diz. António acompanhou “todo o período de transição”, esteve em reuniões e conferências de imprensa… colocou-lhe muitas vezes perguntas. Mas a melhor memória que guarda dele, nada tem a ver com atos oficiais:

A história da visita à criança filha de emigrantes portugueses: ouvir aqui.

“Este ato define Mandela. Nunca mais me saiu da cabeça aquele ato de humildade que o presidente teve. Mas ele fazia muito disso. Depois da visita a esta criança branca, foi visitar uma criança negra. Tinha sempre o cuidado de passar essa mensagem: que para ele, todos os seres humanos eram iguais”.

Quando lhe ligamos, está a sair da rua que já alojou dois Prémios Nobel: Mandela e Desmond Tutu, “durante o apartheid”. Em conversa, conta-nos como o ANC vive, “neste momento, uma crise de credibilidade muito grande” e está “na iminência, segundo alguns jornalistas, de perder muitos e muitos votos”. E como quer, por isso, “aproveitar ao máximo esta morte para se colar outra vez à imagem de Mandela”, acredita o jornalista português. Afinal, como Thierry Vircoulon, analista político, diz em entrevista ao Público, “[Mandela] era a voz da razão dentro do ANC”.

Com as lutas internas e a descredibilização do maior partido sul africano, lucram aqueles que gostariam de ver renascer possíveis ódios reprimidos e claro, a oposição estabelecida. “A Aliança Democrática já ganhou a província do cabo ocidental [nas últimas eleições, em 2009, Helen Zille, ativista, ganhou contra Zuma], o ANC já nem governa o país todo”, explica António. “Depois há a esquerda mais radical africana, os Economic Freedom Fighters (EFF), que advogam uma revolução mais a sério, com a redistribuição da terra pelos negros. Acusam o ANC de terem dado demasiados privilégios ao brancos. Entre os muito pobres, [o EFF] pode arrancar votos ao partido no poder”, acredita o jornalista.

“As pessoas pura e simplesmente habituaram-se a viver juntas”

Luto por Mandela

Mandela será sepultado dia 15 de dezembro em Qunu, onde passou a sua infância. Entretanto, o Governo português declarou três dias de luto nacional: esta sexta-feira, sábado e domingo.

Para já, reina “um ambiente de perfeita normalidade”. “Obviamente que há muitas lágrimas”, mas “o ambiente é mais de festa do que propriamente de pesar“, diz António. Aliás, “há um sentimento de alívio [entre os sul-africanos]. Era altura dele poder partir e deixar de sofrer”, conta

E há aqueles que acreditam que vai continuar assim, sem lutas nem disputas e só uma tristeza muito grande. É que os mais novos, por exemplo, “não viveram aqueles anos negros, aquelas agruras, aquela brutalidade que foi o apartheid”, mas têm a lição bem estudada. Na verdade, António garante que as tensões sociais que continuam a existir na África do Sul já nada têm a ver com questões raciais: “As pessoas pura e simplesmente habituaram-se a viver juntas e à inevitabilidade de terem de coabitar”.

“Já nem sequer têm nada a ver com o facto de Mandela estar vivo ou morto”, explica. A questão é que “há pessoas que não têm acesso a água, eletricidade, saneamento básico…” por causa do poder instaurado. “Toda a gente diz que este já não é o ANC de Mandela”, reitera, mas este continua a ser o povo de Mandela.