Fernando Gabriel lembra-se de quando ouviu falar na revolução: “Pelas notícias, pois sempre tive o hábito de ouvir os noticiários da manhã”. Esse foi o primeiro passo da rotina que, mesmo naquele dia, repetiu. Como todos os dias, saiu de casa em direção à zona industrial do Porto, onde trabalhava como telefonista numa fábrica de tintas. “Cheguei ao trabalho e é evidente que isto mexe. As pessoas conversavam, mas eu, como era telefonista, tinha mesmo que estar no meu posto de trabalho, fazer o atendimento normal e seguir”.

A revolução ouvida

Só quando saiu do trabalho conseguiu acompanhar os acontecimentos. Do caminho de regresso a casa há um som que permanece na memória: “Ambulâncias que iam de um lado para o outro, não para buscar feridos, mas para transportar algumas pessoas para outros locais”. No resto do dia, o ouvido permaneceu encostado ao rádio. Lá, acompanhou o chamamento do general António Spínola ao Quartel do Carmo e a retirada de Marcello Caetano e de Rui Patrício para o exílio. A revolução de Fernando Gabriel foi assim: essencialmente ouvida. Viveu-a de forma próxima e intensa, mas sem nunca a ver.

Desde os 18 anos, vividos em 1959, Fernando Gabriel é cego. Após três intervenções cirúrgicas às cataratas congénitas, numa manhã, enquanto corria pela Avenida Fernão Magalhães, sentiu uma névoa. Um deslocamento da retina tirava-lhe a visão. Nada que abalasse a sua vontade de viver, apenas começava uma forma de viver diferente. “Lutei sempre pela minha autonomia, pela minha independência perante os outros, a começar pela família”. Desde cedo procurou ajuda nas associações de cegos e, rapidamente, aprendeu a ler em braille. A ausência de visão não lhe retirou vivência. Recorda os dias seguintes à revolução como as maiores manifestações de alegria na cidade do Porto. E, apesar de não ter desfilado diante dos seus olhos, há uma cor que associa a todos aqueles dias: “É o encarnado do cravo. Não é a minha cor preferida, mas o cravo encarnado tinha um símbolo, conseguiu-se fazer a Revolução sem haver uma morte”.

Fernando Gabriel – os difíceis dias depois da revolução

A Liberdade desde longe

O dia 25 de abril é recordado como um dia cinzento, carregado de nuvens, no qual o sol não precisou de brilhar. Pelo menos em céu português. A 1.610 km de distância do teatro principal da revolução, em Paris, eram as informações que chegavam cinzentas. “No próprio dia e nos dias seguintes, com as pequenas informações que apareciam, é que se começava a compreender o que se passava”. Mário Pereira, como tantos outros portugueses, tinha emigrado com a família para França, para juntar dinheiro para soldar as dívidas que cá se amontoavam.

Aos 16 anos, tudo lhe parecia normal: “Não sabia se havia melhor, se havia pior. Soube pela comunicação social, mas não liguei grande importância, visto que as informações também não eram muitas. Só se dizia que se passou um golpe de Estado, uma revolução em Portugal, mas sem grandes pormenores”. Os mais velhos regozijavam com o fim da ditadura. Muitos deles, a impulso, voltaram logo a Portugal. As gerações jovens, mais próximas dos franceses, viram a revolução com algum distanciamento. “Dava a compreender o que se tinha passado, que era tudo para melhor e que se tinha passado bem. O que se temia, na altura, era que houvesse guerra, mortos, feridos, e, a priori, pelo que sabíamos, as coisas tinham-se passado calmamente”.

Mário Pereira: 31 anos depois, o regresso

Guerra: o pesadelo de uma geração

Alguns dos que fugiam do país faziam-no para evitar a defesa dos territórios ultramarinos. Para outros, o destino era inevitável. Aos 22 anos, depois da tropa cumprida em Portugal, a Guiné, um dos teatros de guerra mais crus, era o destino de Isaías. “Nós não fomos preparados, aquilo era carne para canhão. As árvores estavam todas sem casca nenhuma, por causa das bazucadas que o inimigo mandava para lá”. Segundo o regime, o inimigo eram os movimentos de libertação: “Não percebia, não me explicavam. Só diziam que eu ia defender a pátria”. Mas, na verdade, o verdadeiro inimigo era o que se plantava no próprio pensamento. “A minha ideia era que ia morrer”.

Isaías Silveira não queria ir para a guerra. A sua família, muito menos, e a partida pareceu um agoiro. Naquela manhã, às seis em ponto, os jovens que iriam enfrentar a guerra em território guineense já estavam dentro do navio Niassa quando, ao sinal de embarque, se ouviu um estrondo: “O barco dá sinal de arranque e, ao mesmo tempo, rebenta uma bomba no porão do barco. Fez um rombo muito grande e nós queríamos fugir, mas a Polícia Militar formou logo um cordão. Puxaram o barco para o meio do Tejo, repararam-no e seguimos para a Guiné”.

A viagem com o medo como destino

Passou a viagem a meias entre o porão e a enfermaria. A aparente inevitabilidade da morte deixava a comida longe do estômago. O destino parecia o final, mas só o foi durante nove meses. Chegara com 22 anos, saía com 23. Mas é como se o tempo não tivesse passado. Houve um aniversário que ficou por festejar, houve parte de si que não regressou. Chora ao lembrar tais tempos e diz que o tempo, outra das inevitabilidades a que não conseguiu fugir, não curou algumas mazelas.

Isaías Silveira – o sol que era diferente

A memória permanece intacta e o dia em que a notícia chegou não se esquece. Não foi a dia 25, só alguns dias depois. Após serem transmitidas informações difusas que indicavam uma insignificante insurreição, confirmava-se o fim da ditadura e o início do processo de retirada das tropas. Ficou mais algum tempo a ajudar na rendição dos elementos mais antigos do regime, mas, ao atirador português, já ninguém tirava o eco constante da palavra que nunca quis deixar de ouvir: “casa”. Encontrou um país diferente, procurou trabalho, mas, ainda hoje, a notícia provoca a mesma reação: como foi possível um conjunto de capitães iniciar uma revolução sem derramar sangue?

O 25 de abril vivido num tanque

José Alves Costa – O dever de desobedecer

José Alves Costa não fez parte do Movimento de Capitães, mas a sua ação foi uma das que garantiu que o único vermelho da revolução fosse o dos cravos. Desobedeceu ao seu superior, não abriu fogo sobre os seus camaradas militares e a primeira das manifestações de união dava o mote para a confirmação. “O meu ato foi um ato de cidadão, um ato de português”. Ao qual se juntaram tantos outros. O povo juntou-se aos militares e a revolução ganhou forma. Os cravos brotaram dos braços levantados e dos gritos de ordem entoados. A liberdade foi o caminho comum para cada uma das histórias. À pergunta “Onde você estava no dia da revolução?”, uma resposta: “A abrir as portas de abril”.