Escrever este livro implicou algum trabalho de investigação?
Sim. Para escrever “Os Memoráveis” eu tive de, em primeiro lugar, voltar a ler muitos jornais que fui guardando ao longo do tempo. Também comprei e consultei vários livros dos próprios intervenientes e historiadores, enfim… pessoas de cultura que têm pensado sobre o fenómeno. E depois, inclusive, encontrei-me com algumas figuras e fui aos locais e, portanto, fiz esse trabalho… que não sei se se pode chamar de investigação. Foi uma revisitação útil, digamos assim.

Uma das personagens, o antigo embaixador, refere a necessidade de “recolher o resto da metralha de flores que ainda existe entalada entre as pedras da calçada de Lisboa”. É esta a realidade que quis contar? Explorar o que ficou na memória?
Ele refere a “metralha de flores” como uma espécie de símbolo da coisa luminosa e boa que aconteceu e instiga Ana Maria Machado a vir recolher esses elementos, a par de outros colegas descendentes de outros europeus em cujos países aconteceu alguma coisa de semelhante. Mas, na perspetiva dele, nada aconteceu tão bom e tão esplendoroso quanto em Portugal. Essa é a perspetiva que ele tem e, portanto, instiga Ana Maria Machado a vir ao encontro desse momento luminoso.

“O facto de ter escondido as personagens históricas sob essas alcunhas significa que eu pretendi poetizar essas figuras”

Em “Os Memoráveis”, o ponto de partida para a escolha das personagens da revolução é uma fotografia, tirada em agosto de 1975. Se esta fotografia não existisse, evocaria as mesmas personagens?
Estas personagens são muito importantes, porque são aquelas que eu acabei por conhecer melhor. São figuras que não são tão próximas que me impedissem a fantasia, mas, ao mesmo tempo, não são distantes – existe informação suficiente em torno delas para não faltar completamente à verdade, manter a essência delas. Todas essas figuras são imprescindíveis.

Apesar de ter atribuído alcunhas aos protagonistas da revolução, podemos dizer que este romance é o que toca mais de perto o real?
A ficção é uma disciplina que, partindo de factos irreais, pretende tocar a verdade, aproximar-se o mais possível da verdade dos factos. É um caminho surpreendente porque é o contrário da história. O facto de ter escondido as personagens históricas sob essas alcunhas significa que eu pretendi poetizar essas figuras e a poetização é uma distância: envolve criar em torno da realidade uma outra realidade. Não só com as personagens, mas também com os próprios espaços, com um determinado nível de realidade que ficou metamorfoseada. Aliás, nenhuma das figuras é completamente o retrato jornalístico das próprias figuras. Cada figura congrega aspetos de outras: aproximei-as de símbolos, aproximei-as de figuras que, às vezes distraídas em relação àquilo que foram os seus próprios princípios e outras vezes vítimas dos mesmos, aparecem em todas as revoluções.

Também se inspirou em figuras reais para criar as personagens dos três jovens jornalistas?
Não. Aí foi mais uma criação daquilo que eu imagino que são jovens. Contacto muito com os jovens – especialmente jovens jornalistas – e tenho percebido que são os jovens que melhor conseguem fazer uma análise daquilo que se passa à sua volta, porque têm instrumentos académicos que lhes permitem essa abordagem. E, portanto, eles, ao contrário das outras figuras que têm uma matriz por trás, são figuras facilmente encontráveis.

“Cada capítulo constitui uma espécie de levantamento teatral da relação dos três visitantes com os três visitados”

Teve dificuldade no processo de criação destas personagens?
Não, não tive, porque eles têm temperamentos diferentes. Nós encontramo-los com facilidade. Encontramos a rapariga ressentida – Ana Maria Machado -, aquela que tem um problema consigo. Ela foi alimentada pela revolução, mas também foi vítima de uma espécie de euforia familiar que a destruiu quando ela era jovem e que a transformou numa figura de revolta, com uma necessidade de violência e com uma inibição em falar de si mesma. Ela, para mim, era muito importante, porque não é simples: é aquela que sabe e aquela que não quer saber. É a figura complexa que tem memória do passado, mas finge que não tem; que, ao mesmo tempo, é atraída pelo seu país e repudia o seu país. Por outro lado, temos uma pessoa entusiasta – Margarida Lota -, aquela que não sabendo nada do que se passou, envolve-se completamente com as figuras [da revolução], apaixona-se por elas. É entusiasta absoluta, a rapariga que tem um olhar puro sobre a realidade, um olhar virgem sobre as coisas e fica admirada desse passado. Ela acha que os jovens da sua idade não têm capacidade para ser o pai dos seus filhos. Ela procura encontrar naqueles homens a semente do entusiasmo, da coragem, da imprevidência que os transformou em heróis. E ao contrário destas duas figuras, temos uma terceira – Miguel Ângelo -, o jovem que tem o pensamento reservado e de certa forma até cínico em relação à situação e que, em vez de aderir, está permanentemente a desfazer. E como Bob Peterson explicava, estes olhares eram necessários, porque só assim se conseguia ter os vários olhares que podem penetrar na realidade.

O fechar de um ciclo

Este romance estabelece uma ponte com o seu primeiro, “O Dia dos Prodígios” (1980). Foi propositado ou um mero acaso? Não foi propriamente um mero acaso. O “Dia dos Prodígios” é um livro que as pessoas associam precisamente à revolução porque eu dei um quadro quase antropológico do estado em que estava uma aldeia do interior de Portugal. Com sonhos, com superstição, com miséria, com o desejo de ser outro, mas era uma população encurralada em si própria e que de repente tem a possibilidade de uma esperança e não sabe gerir essa esperança. O que acontece é que neste livro [“Os Memoráveis”] a situação é completamente diferente. Estas figuras são figuras do mundo, correspondem ao português atual que entretanto se internacionalizou, viajou, tem uma vivência cosmopolita. É na base desse balanço do cumprimento que este livro é feito. Agora, há uma coisa comum aos dois: ambos são livros que fazem uma celebração do dia da revolução, não do processo que vem a seguir, mas do dia da revolução.

Em entrevista ao Jornal de Letras, disse que por estas páginas passava a sua carne. Viveu, então, cada uma das personagens?
Elas são o reflexo do meu olhar. Há uma coincidência, há uma simpatia com todas elas. Se elas são quixotescas, é porque eu também sou, se elas são grotescas, é porque eu também sou, se elas são desencontradas da realidade, é porque eu também sou. Eu perdi-me por elas. A ponte de andar à volta delas durante algum tempo e de escrever o livro sob uma certa tensão, uma certa intensidade, foi porque, de facto, elas no seu conjunto constituem as figuras do meu “jantar” preferido. São as figuras que eu chamaria para jantar para conseguir compreender o que se passou, o que foi ganho e o que foi perdido e para ver também o estado de alma em que se encontram neste momento.

Cada capítulo difere dos restantes: enquanto o primeiro faz referência a uma fábula, o terceiro já transparece uma visão otimista. Isto está de alguma forma relacionado com a fase em que foram escritos?
Tem a ver com a fase e tem a ver com o processo criativo consciente. Cada capítulo constitui uma espécie de levantamento teatral da relação dos três visitantes com os três visitados. A primeira parte, com cerca de dois anos, corresponde ao início do livro quando eu não sabia se iria escrevê-lo ou não e revela precisamente a fábula, isto é, aquilo que consta. A parte intermédia, mais ampla, revela o que foi cumprido e o que foi incumprido ao longo destes anos todos. A última parte é uma parte voluntariosa. Não é assim que eu vejo, mas é assim que eu gostava de deixar para o futuro. É aquilo que Ana Maria Machado propõe como arte: a história não é possível, mas a mitologia é possível, o mito é possível, a arte é possível. A proposta é que a arte salve aquilo que a história não consegue fazer.

“A última parte é uma parte voluntariosa. Não é assim que eu vejo, mas é assim que eu gostava de deixar para o futuro”

Lídia diz que o “romance oferece sempre um projeto de futuro”. Qual é o de “Os Memoráveis”?
Qualquer obra de arte, mesmo que seja sobre terror, acaba sempre por ter um projeto de futuro se for bem constituído e tiver harmonia. Olha-se para a Guernica, por exemplo, e vê-se que a mensagem que está por trás é de destruição. Ainda não está explicado o que existe na nossa cabeça que faz com que a arte nos faça andar com uns centímetros acima da terra. Parece ser uma proposta literalmente negativa, nós sentimo-nos exaltados. Possivelmente, serão os leitores a dizer. Eu sinto é que ao longo de todo o livro disse o seguinte: este foi um povo que não teve coragem suficiente para ser autónomo, para fazer coincidir o seu desejo de sonhar com a sua força de agir e, portanto, em parte chumbou, em parte triunfou. Eu estou a mostrar porque chumbou e desejo que o tenha feito de uma forma tão exaltante que quando se chega ao fim, os jovens sobretudo fechem a última página e digam: “Eu quero ter alegria, quero ter coragem de enfrentar o futuro e não ter medo do futuro, de fazer uma coisa semelhante àquilo que aqueles rapazinhos fizeram”.

A conclusão da narradora, Ana Maria Machado, de termos em mãos “uma luta inacabada” é também a sua?
Sim. Todas essas personagens são delegadas de um certo lugar, compete ao romancista de o fazer. Faz parte da essência do romance que o próprio autor se desdobre nos vários personagens, porque no fundo o que é um autor do romance? É aquele que só com a sua voz não formula a pergunta suficiente, então precisa de se desdobrar em vários personagens para que cada personagem faça a pergunta à sua maneira na ideia de que o conjunto das questões, colocadas de vários pontos de vista, possa aproximar-se mais da pergunta essencial.