Falar do Ultramar é recordar boas ou más memórias?

Temos umas boas e outras más.

O que recorda de bom?

A camaradagem e a amizade que se criou. A união era necessária para partilharmos as situações difíceis que na altura decorriam. Era muito importante a nossa união, aquela amizade que se criou e o apoio que sentíamos, solidariedade.

E de mau?

Os maus momentos foram os que a guerra nos proporcionou.

Recuemos cerca de quarenta anos. Como surgiu a ideia de integrar um grupo de enfermeiras civis nas Forças Armadas Portuguesas?

Essa ideia foi criada pelo, na altura Secretário da Aeronáutica da Força Aérea, General Kaúlza de Arriaga. Achou que as enfermeiras civis desempenhariam um papel muito importante na guerra que minimizasse o sofrimento dos combatentes e evitar algumas mortes. Os primeiros socorros, os primeiros salvamentos seriam fundamentais.

Numa altura em que o código civil colocava a mulher como dona de casa, como surgiu o “sim” de Salazar à vossa presença no Ultramar?

Não foi fácil. Não foi fácil a aceitação das mulheres na guerra. Foi difícil convencer Salazar. Havia muitas contrariedades, mas quando Salazar ouviu o General Kaúlza de Arriaga, mandou avançar com a ideia. E a partir daí desenvolveu-se todo o processo da nossa candidatura através dos hospitais, das escolas de enfermagem. Quantos mais grupos se formassem para se distribuírem pelas províncias ultramarinas, melhor.

Mensagens bordadas sem bolinha vermelha

Alguma correspondência, merecedora de “bolinha vermelha”, está a ser bordada em lenços de linho. Uma iniciativa da Câmara de Famalicão, para comemorar o 25 de abril, borda, em tons de verde e vermelho, mensagens que ligavam os militares do Ultramar às magrinhas de guerra. Imitando o camuflado militar, os Lenços das Madrinhas de Guerra perpetuam poemas de amor, palavras de conforto que ajudavam os soldados a “sentirem-se vivos”. Num cenário escuro, alguém os ouvia.

Como era o curso de seleção das mulheres paraquedistas?

Era exatamente como o dos homens. A mesma coisa, o mesmo treino físico. Todo o processo do curso era igual para homens e mulheres.

Demasiado forte para senhoras?

Era forte, mas a vontade de colaborar também. A coragem que essa força nos dava levou-nos onde queríamos: ser útil.

O seu “sim” surgiu dessa vontade ser útil ou foi uma questão de “rebeldia”, aventura?

Os vinte anos são sempre aventureiros, não é ? Eu na altura já estava no Hospital de Santa Maria à cerca de três anos ou dois anos e onze meses, salvo erro, quando surgiu o convite de enfermeiras para se candidatarem ao curso de paraquedismo da Força Aérea. (pausa) A vida hospitalar é um pouco rotineira e a rotina, na idade dos vinte anos torna-se maçuda, como se costuma dizer. Para fugir um pouco à rotina e sentir-me mais útil numa situação de muito sofrimento, de muita confusão, onde eu seria mais necessária. Então antes de me candidatar eu pensei muito, porque ia fazer um curso de paraquedismo. Era um risco. E ir para a guerra um risco ainda maior.

E críticas, ouviam?

Não. As únicas conversas que havia na altura eram com as colegas. Fomos um grupo desse hospital e acabamos por nos incentivar umas às outras. E pronto, acabámos por desempenhar um papel importante e aventurámo-nos.

Na altura as enfermeiras não se podiam casar.

Não, não podiam, na altura.

Para se dedicarem vinte e quatro horas por dia à profissão?

Vinte e quatro sobre vinte e quatro sempre ao serviço do país.

“Sempre em sobressalto, sempre sujeitos aquilo que lhes podia acontecer. E acontecia. Tanto acontecia que depois nós éramos chamadas para os ir buscar”

Não tinham tempo livre?

Havia um dia de folga, sempre. Mas um dia de folga, naquela situação, não era uma coisa muito divertida. Estávamos em situação de guerra e as folgas ali era mais físicas, mas pensava-se muito no ambiente em que estávamos.

E os militares, tinham tempos livres, sem armas?

Não. Os militares dormiam constantemente com as armas. Passavam semanas, meses no mato. Andavam quilómetros e quilómetros a pé por aquelas densas matas, onde não viam nada sequer. Sempre em sobressalto, com alimentação precária, chamada ração de combate, sempre sujeitos àquilo que lhes podia acontecer. E acontecia. Tanto acontecia que depois nós éramos chamadas para os ir buscar.

Numa das suas entrevistas diz que eram “as amigas, as mães, as mulheres daqueles homens”.

Sim, nós desempenhávamos várias funções. Representávamos a mãe, a irmã, o psicólogo. Nós tínhamos que ouvir os desabafos deles.

Sentiram-se obrigadas a “vestir as calças” nesses momentos?

Sim, literalmente. Nós tínhamos camuflados, vestíamo-nos como os homens.

“Quando nos viam, por vezes, diziam que viam um anjo”

Os militares chegavam a chorar perto das enfermeiras ou tentavam manter a “postura de homem” e não mostrar fragilidade perante uma senhora?

Por vezes, quebravam. E quando nos viam, naquelas situações em que estavam feridos, desamparados, entregues aos companheiros e a si próprios, quando nos viam, por vezes, diziam que viam um anjo.

Foi madrinha de guerra de algum deles?

Eu fui, mas antes de ir para lá. Antes de ir para a guerra já me correspondia com alguns como madrinha.

Então, apesar de algumas enfermeiras terem chegado mais tarde, já sabiam o que as esperava.

Sim, sabíamos de tudo o que se passava desde 1961. O nosso primeiro grupo de enfermeiras foi em 1961.

As “Seis Marias”.

A Maria Arminda, Maria do Céu, Maria Ivone, Maria Zulmira, Maria de Lurdes Rodrigues e Maria de Nazaré.

E havia inimigos para uma enfermeira?

O inimigo era para todos. Se fossemos capturados, não sabíamos o que ia acontecer.

Mas tratavam da mesma forma um militar português, como de um civil, como um “inimigo”?

Sim, todos eram tratados por igual. Os inimigos capturados que fossem feridos eram tratados tal como os nossos. Uma vez, um nativo chegou a nós e dizia, em crioulo, “vou morrir, vou morrir”, e eu, “cala-te homem, não vais nada que eu não deixo”. No hospital não sei, mas connosco não morreu. O que queríamos era levá-los vivos para os hospitais e isso cumprimos. Não importava quem.

Esteve apenas na Guiné?

Sim, só estive na Guiné. Depois deu-se o 25 de abril e não foi necessário ir para lado nenhum. E fui a última, encerrei aquele período de guerra.

“Uma amiga minha veio no 25 de abril. Quando regressou à Guiné deu-me um cravo e disse-me que o tinha que levar para a manifestação do Primeiro de maio”

Como celebraram o fim de guerra?

Com muita alegria e satisfação. Por acaso há uma história engraçada (sorri). Às vezes tínhamos que vir à metrópole fazer carregamentos. As famílias dos militares enchiam os aviões e éramos sempre chamadas à atenção. Uma amiga minha veio no 25 de abril. Quando regressou à Guiné deu-me um cravo e disse-me que o tinha que levar para a manifestação do Primeiro de maio. E assim foi.

A Guiné é destacada pelas enfermeiras como a zona mais difícil.

A Guiné foi sempre a zona, como se costuma dizer, a zona mais quente da guerra. A luta era mais aguerrida, os ataques mais constantes. Havia dias em que enviávamos todas as aeronaves para evacuar os feridos.

As enfermeiras viram-se obrigadas, em alguma situação, a pegar em armas?

Não, nunca. A nossa arma era a bolsa que trazia todo o material necessário para socorrer. Normalmente, as evacuações que fazíamos eram acompanhadas pelo chamado “helicanhão” que protegia a aeronave que fazia a evacuação.

“Sentimos muita gratidão por parte dos nossos companheiros das Forças Armadas. Aí sim, fomos reconhecidas”

Adriano Moreira, ministro do Ultramar, em 1961 e 1963,afirmou que o vosso trabalho não era reconhecido como devia. Concorda?

Concordo. O nosso país nunca manifestou interesse, nunca sentimos gratidão. Mas sentimo-nos bem, com o sentimento de dever cumprido. Fomos úteis. Sentimos muita gratidão por parte dos nossos companheiros das Forças Armadas. Aí sim, fomos reconhecidas.

Valeu a pena pertencer a este grupo de enfermeiras paraquedistas?

Sim, valeu a pena. Foi gratificante, muito gratificante. Contribuímos para a mudança de estatuto da mulher.

E a guerra, valeu a pena?

Não, para nós não. Talvez para alguém…