Helena Felgueiras, interna de Neurologia no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, ri-se quando lhe perguntamos pelas condições da faculdade de Medicina onde estudou. “Lembro-me de termos anfiteatros completamente lotados – ficávamos sentados nas escadas – ou de mesmo, às vezes, não termos sítio para ver um doente. O aumento do numerus clausus nas faculdades de medicina justificou-se durante algum tempo, mas agora há demasiada gente”, afirma.

Lígia Figueiredo, interna de Oftalmologia, tenta explicar porque é que o atual número de internos nos hospitais não traz benefícios: “Quando há muitos internos, a formação fica prejudicada. Tens muito menos cirurgias, tens que dividir as consultas… a tua aprendizagem fica dificultada”.

A falsa questão da falta de médicos em Portugal

“Mas estamos sempre a ouvir falar que faltam médicos em Portugal”, contrapomos. Lígia inclina-se na cadeira e mexe muito as mãos enquanto fala: “As pessoas pensam que há falta de médicos, mas a única falta que temos é de médicos de família, é a única área onde há falta”, garante.

O problema dos médicos de família

“Quando os alunos acabam, saem mais ou menos 1200 por ano. Só 30% das vagas é que são para médicos de família, até porque eles próprios queixam-se que não conseguem formar mais, não há capacidade formativa. As pessoas esquecem que entre um aluno entrar pela porta da faculdade [pela primeira vez] até sair especialista são 12 anos”.

“Os alunos que estão a entrar agora vão ficar no desemprego. Porque agora há médicos de família em falta mas daqui a cinco ou seis anos já não, porque estão sair muitos”.

João Costa está no primeiro ano de internato e já nota que existem alguns problemas na formação de médicos em Portugal, mas acha que o verdadeiro problema está na “distribuição dos recursos humanos”.

“Talvez a maior parte dos profissionais estejam localizados nos grandes centros e no interior escasseia, principalmente em especialidades que requerem uma grande quantidade de profissionais, como Medicina Geral Familiar. Não consigo perceber porque é que está a haver um descontrolo no número de vagas para as faculdades”, diz.

Mas Lígia tem uma resposta para João. “1980 era uma altura em que formavam para aí 80 médicos por ano a nível nacional. Isso é pouquíssimo. Ora bem, quando é que haveria falta de médicos com esses números? Em 1995, 2000, que foi a altura da enorme falta de médicos em Portugal. Eles pensaram: «Como há muito falta temos que começar a formar»”, conta.

Não adianta abrir tantas vagas se só daqui a 12 anos é que se vão formar, e aí vão estar no desemprego

“O problema foi que se esqueceram de que se formarem muitos agora, daqui a 15 anos vai haver um excesso. Não há dúvidas de que precisamos de cortar já nas vagas de Medicina. Não deve ser difícil fazer um cálculo entre o número de médicos que se estão a reformar e a real necessidade de médicos no país e a partir daí ver um número regular de alunos. Porque o problema de Portugal é numa altura formar 80 e noutra formar 1200”.

Um aumento de ingressos de mais de 300%

A Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM) concorda com os internos. Duarte Sequeira, presidente da ANEM, esclarece esta tomada de posição: “Em menos de dez anos verificou-se um aumento de ingressos nos cursos de Medicina superior a 300% e a estas vagas tem-se que acrescentar o contingente especial para acesso a titulares de licenciaturas, que correspondem a mais 15%, o que dá um total de mais de 1800 estudantes por ano”.

Um paciente não tem nada que levar com cinco ou seis alunos a fazerem-lhe um toque retal

“Este número excessivo de alunos prejudica gravemente a qualidade do ensino. Sim, foram abertas duas novas faculdades entretanto, mas não é suficiente”. Duarte Sequeira fala ainda da “humanização dos cuidados de saúde que sai comprometida”.

Necessidades formativas versus vulnerabilidades dos pacientes

“Para os pacientes não é nada confortável ter oito alunos à volta deles, quer dizer, não vamos pôr todos os alunos a repetir um procedimento a um doente, é retirar toda a privacidade. É um conflito entre a necessidade de prática clínica de um estudante e formação adequada e a dignidade do paciente, que não tem nada que levar com cinco ou seis alunos a fazerem-lhe um toque retal, que é o que em algumas faculdades está a acontecer. É gravíssimo”, sublinha.

Recomendação do Grupo de Trabalho para a Revisão do Internato Médico

Citando uma recomendação de 2012 do Grupo de Trabalho para a Revisão do Internato Médico, constituído pelo Ministério da Saúde, a ANEM recorda a proposta de redução de vagas para dois terços da atual oferta, e sublinha que esse grupo de trabalho afirmava na altura que “só deste modo se poderá manter e reforçar o bom nível de formação pré-graduada e assegurar, aos que chegam ao sistema formativo do Ministério da Saúde, uma profissionalização que respeite os parâmetros europeus”.

“Há uma falta de planeamento e coordenação entre Ministérios”

O presidente da Associação de Estudantes do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (AEICBAS), Pedro Ribeirinho Soares, fala ainda de um outro problema.

“Quem abre as vagas, o acesso às faculdades, é o Ministério de Educação e Ciência e por outro lado quem abre as vagas para o acesso ao internato de especialidade é o Ministério da Saúde. Há aqui uma falta de planeamento entre o número de estudantes que entra e que depois tem acesso ao internato. E é mesmo importante clarificar e reafirmar que um estudante que tenha completado o mestrado em Medicina não pode fazer nada relacionado com a Saúde, não pode trabalhar num hospital”,.

Já foi entregue uma petição assinada por sete mil estudantes

“Em 2012 foi entregue na Assembleia da República um petição assinada por mais de sete mil estudantes, em que se pedia um planeamento integrado em Medicina. Um planeamento onde se conseguisse ver qual é a real necessidade de médicos do país, porque o número de médicos que temos atualmente por habitante é idêntico ou ligeiramente superior à média europeia, mas existe uma ampla assimetria entre o número de médicos que existe no litoral e no interior”, diz Pedro Ribeirinho Soares.

O presidente da AEICBAS conclui dizendo que já existe um “estudo disponível feito para a Ordem dos Médicos, pela professora Paula Santana, em que já prevê, tendo em conta o numerus clausus atuais, que em 2025, em especialidades como Medicina Interna, vai haver um excesso superior a mil médicos”. “Faz sentido olharmos para os estudos que existem e haver um planeamento da medicina no nosso país”, conclui.