“A semana passada, fui à sapataria comprar sapatos e tentei ouvir a conversa entre o vendedor e o cliente. Eles falavam da qualidade, do preço, do tamanho… e eu compreendi a conversa, mas porque sabia do que estavam a falar: tinham sapatos na mão e estavam numa sapataria”. É assim que Ayhem Khadem Alarbien descreve a batalha diária com a aprendizagem da língua portuguesa, numa conversa que decorre em inglês.

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Está no Porto desde 1 de março, juntamente com nove outros estudantes sírios, num total de 82 que vieram para o país no âmbito da Plataforma Global de Assistência Académica de Emergência a Estudantes Sírios, uma iniciativa idealizada por Jorge Sampaio em abril de 2013.

O objetivo foi trazer estudantes universitários sírios para o país, por um período de dois a três anos, em que os alunos estudam a área que pretendem nas várias instituições que os acolhem e apoiam com o valor da propina, da habitação, da comida, entre outras despesas (em alguns casos, algumas instituições só podem oferecer a propina, tendo a Plataforma recorrido a apoios anónimos).

Este é o caso de Ayham Alarbien, que está inscrito no mestrado em Business Economics (MBE) da Universidade Católica do Porto, mas também de Helen Meerkhan, que estuda no Instituto Superior de Engenharia do Porto (o Instituto Politécnico do Porto acolheu quatro dos dez estudantes sírios), no mestrado em Geologia.

Há ainda um que trabalha no Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto e outro que estuda na Escola Superior de Música, Artes e Espetáculo (ESMAE), mas queria estudar jornalismo político. Estão deslocados em Portugal, em grande parte, devido aos tumultos no país natal.

“Se toda a gente sair para o ocidente, quem construirá o país?”

Helen e Ayham explicam ao JPN que têm “muita sorte” por estarem em Portugal, já que se inscreveram “apenas duas horas antes do prazo” estabelecido para a submissão de candidaturas. No entanto, agora que estão no Porto ao abrigo da bolsa, querem aproveitar a oportunidade.

“Temos planos para o futuro, mas temos de terminar o curso, talvez fazer parte desta sociedade, trabalhar cá”, explica Ayham, embora seja rápido a realçar que o principal objetivo da Plataforma deve ser o de “preparar pessoas profissionalmente para voltarem ao país de origem e reconstruírem-no”.

“Se toda a gente sair para o ocidente, quem construirá o país?”, questiona Ayham, de 30 anos, que quer “dar algo de volta ao Porto” para agradecer a oportunidade que lhe foi concedida, embora nunca se desligue do que realmente pretendem: “Reconstruir a Síria”.

“Acho que a Síria precisa de nós”, diz Ayham acerca dos jovens sírios que saem para estudar

“Muitos portugueses pensam no Brasil, Angola, Alemanha, no norte da Europa, países com salários elevados. É algo que se deve encarar como uma experiência, mas não como uma vida”, explica Ayham. Helen concorda, e Ayham completa: “Muitas pessoas que vêm estudar para o Ocidente só querem ter um bom trabalho, com um bom salário, na Europa, onde se vive bem. Acho que não devemos ser egoístas, e esta maneira de pensar é egoísta”.

“Ao vir para cá, descobrimos uma nova vida, novas ideias, uma nova cultura. Quando voltarmos à Síria levamos novas ideias que não tínhamos”, explica Helen, 22 anos, num inglês mais truncado que o de Ayham.

Quanto à língua de Camões, “agora é mais fácil”, embora Helen diga que é um trabalho contínuo, até porque “tudo é diferente: “A cultura, as pessoas”, até mesmo a comida, já que, devido à religião, não comem carne de porco. Falta-lhes, sobretudo, “o pão sírio”, “muito diferente do que encontram” aqui.

“Aceito qualquer coisa que pare a guerra”

Os dois ainda se lembram bem da Síria e têm “saudades” do país, mas as recordações que guardam não são felizes: “No último ano tornou-se mais complicado, mas as pessoas já estão habituadas a ouvir as bombas. No início era assustador, agora é habitual”, explica Ayham, que acredita que o país vive um dos piores momentos da história.

“Em 2012, um euro valia 60 dólares sírios; agora, um euro vale 260 dólares sírios, por isso é possível imaginar o quão caro o país vai ser”, explica, referindo que a inflação exagerada já começou a fazer mossa no país. Durante o inverno, “muito complicado para o povo sírio”, a crise energética fez com que muita gente não pudesse depender do diesel para utilizar nos utensílios de aquecimento. Mas os problemas da síria não ficam por aqui.

“A convenção de Genebra [23-31 de janeiro] trouxe esperança à Síria, mas falhou”

“Não é possível levar uma vida normal: não se pode trabalhar no que se quer, não se pode ir aonde se quer, e perderam-se muitos trabalhos. As nossas famílias, por exemplo, estão sentadas à espera que o mundo acabe”, explicam. Falam com a família “todos os dias”, através do Skype, e ficam felizes por saberem que, apesar das circunstâncias, todos “estão bem”.

“Todos os dias morre mais gente, há mais destruição, está a tornar-se cada vez pior”, explica Ayham. Helen completa: “As crianças não podem brincar num parque infantil, porque há muitos raptos”. A guerra civil em que está embrulhada a Síria, desde 2011, já retirou a casa a mais de cinco milhões de pessoas, agora refugiadas noutros países, como o Líbano, a Turquia ou a Jordânia, ou ainda deslocadas para o norte do país, onde a situação é mais calma.

Ayham confessa que se identifica mais com os revolucionários, mas se lhe perguntarem, sabe quais são as prioridades. “Só quero que isto acabe”, diz, “de qualquer maneira. Se o governo ficar, por mim tudo bem. Alguém tem de tratar desta situação, temos de parar de pensar em quem vence ou perde, não se trata disso, trata-se das pessoas que estão a sofrer com a situação”.

“Temos saudades da Síria, mas aqui temos coisas diferentes”

Os dois jovens vêm da capital do país, Damasco, e explicam que a diferença cultural é muito grande, mas têm encontrado no Porto experiências agradáveis. “Fomos à Queima das Fitas, foi muito interessante”, explica Ayham, que diz gostar do que se faz, culturalmente, no Porto, embora seja “muito diferente” do que se faz em Damasco – uma das cidades mais antigas continuamente habitadas do mundo.

“Não estávamos habituados a ir a bares e festas”

“Estamos a gostar de experimentar”, completa Helen, que considera que agora é “mais fácil” entender-se com os portuenses. “As pessoas aqui são muito simpáticas e isso torna as coisas muito mais fáceis”, acrescenta Ayham.

No final, voltam ao ponto de partida: dizem estar “integrados no estilo de vida”, e até deixam uma promessa: “Na próxima entrevista, já falamos em português”.