Para chegar ao Bairro de Aldoar basta seguir no autocarro 501, mas é preciso muito mais do que uma hora de viagem para cair na realidade do bairro. Um sol quente e agradável rasgava o céu e aquecia aquele final de tarde no Porto, mas no bairro era a sombra que dominava, erguida pelos 16 blocos de apartamentos.

“Não é o bairro que me define”

O Cerco
O Lagarteiro

Nas ruas de Vila Nova e Alcaide de Faria, os caminhos em terra batida que separavam as habitações tinham um movimento inesperado para um final de tarde de segunda-feira. Enquanto um grupo de jovens conversava em torno do carro ao fundo da rua, uma mulher mais velha seguia a direcção contrária, amparada por duas outras senhoras amigas.

Encontrar a Associação de Moradores do bairro foi fácil. Toda a gente conhecia o café do bloco 11 e a D. Esmeralda. Mais do que um centro de convívio e apoio, a Associação assume-se quase como um lar para aqueles moradores. Para além do café, dispõe ainda de uma sala de estudo e de jogos para os mais novos, um balneário para os moradores tomarem banho sempre que precisarem, vestiários para a equipa de futebol, uma sala de reuniões e um escritório onde as taças e as fotografias imperam na decoração e transmitem os 45 anos de história. Mas se a Associação é uma casa, Esmeralda Silva é o pilar.

Paragem obrigatória ou única saída?

Há 17 anos na presidência da Associação, a dirigente já dispensa qualquer tipo de apresentação na Freguesia de Aldoar e conhece melhor que ninguém “os cantos à casa”. Esmeralda Silva já assava castanhas e preparava as brasas do grelhador, enquanto distribuía piadas e receções calorosas pelos que por ali passavam.

Quando se tenta saber o que Esmeralda faz enquanto Presidente da Associação, a resposta é longa. Tratar das ordens de despejo, avarias, cortes de água, luz e da dinamização do bairro são alguns exemplos das tarefas da mulher que dá a cara pelos moradores e entrega-se “de corpo e alma à comunidade”. “Para mim é um dever olhar por estas pessoas. Faço futebol aqui para as crianças no nosso bairro, faço peças de teatro, passeios e nunca vão sem lanche embora”.

Esmeralda sabe bem o que é viver entre a miséria e a pobreza. Criada no Bairro de Lata de Xangai, é a mais velha de 21 irmãos e diz ter sentido na pele o que é ter pratos mas não ter comida.

Com uma vida dividida entre o trabalho e a associação, a presidente durante o dia toma como principal atividade o serviço a dias, de forma a garantir o seu sustento mensal, dedicando-se no período da tarde, e muitas vezes até às 22h da noite, à Associação. Uma obra que já lhe garantiu uma medalha de mérito social e uma condecoração pelo Presidente da Câmara Rui Rio, mas que tira o sono pelas preocupações que vive.

“A mim custa-me muito falar sobre estas coisas porque eu estou no terreno e vivo muito isto”

Mas não é a medalha que a presidente mais valoriza. Habituada a dar o “corpo ao manifesto”, para esta “mulher do povo”, o melhor de ajudar, é poder também receber, ainda que só seja um obrigado. “Os miúdos às vezes vêm-me pedir um copo de água e bebem como se fosse leite… Devagar, assim a olhar para mim e eu pergunto se já lancharam e respondem logo que não… Dou-lhes um pão, meia de leite e quando se esquecem de dizer obrigada vêm logo para trás agradecer …e isso cai tão bem!”.

De acordo com a Presidente da Associação, neste momento o problema mais urgente que tem em mãos é resolver os cortes da água e luz no bairro. Com dívidas a ascender aos cinco mil euros, a população está a viver em sobressalto e prepara-se para resistir aos cortes naquela zona e conseguir novos planos de pagamento.

Esmeralda reconhece que o presidente Rui Moreira tem demonstrado preocupação mas acha que ainda há um longo caminho a percorrer. “Eu acho que eles deviam olhar ainda mais pelas pessoas carenciadas porque aqui no bairro 85% não têm luz, nem água mas também 85% não tem trabalho. Temos muitos pescadores mas o mar nem dá sempre peixe”.

Mas depois de resolver este, ficam ainda muitos outros por ajustar. As casas também fazem sempre parte da ordem do dia e das conversas de café, mas nunca pelas melhores razões. Ora degradadas, ora a abarrotar, são também uma das prioridades até para o Pai Natal. “As crianças às vezes vão para a escola dizer que queriam ter uma casa. Quando eu pergunto o que eles querem no Natal, também é isso que respondem porque estão saturados de ver tanta gente numa casa só.”

Esmeralda não sabe como seria um dia perfeito no Bairro de Aldoar. A estabilidade parece uma miragem e acabar com estes problemas uma verdadeira utopia. Mas ainda assim, reconhece que há quem possa fazer mais para melhorar esta situação. “Algumas assistentes são assistentes de gabinete… E [os moradores] estão à espera que eu resolva sempre alguma coisa, não me largam como se fosse eu que tivesse o dinheiro e como se fosse a assistente social”.

Na opinião da socióloga Maria João Pereira, a presença no terreno já foi uma realidade recente, mas de nada adianta. “O que acontece é que as pessoas estão no terreno, intervêm, e as coisas começam a mudar. Mas as pessoas estão tão acomodadas que quando acontece a saída dos técnicos volta tudo à estaca zero”.

“Não podem julgar 100 pessoas do bairro por causa de uma”

Mas não é só do lado da Associação de Moradores que se fazem críticas ao apoio da Segurança Social no Bairro. Cidália Meireles tem 29 anos e sempre viveu no Bairro do Aldoar. Apesar de já ter sofrido de tuberculose, afirma que nunca recebeu qualquer tipo apoio, vivendo sempre à custa do trabalho ou da família. “A minha assistente social prometeu-me apoio mas nunca aconteceu. Nunca foi concedido”.

A jovem acredita que há falta de fiscalização e conhecimento da realidade por parte das entidades e isso reflete-se na distribuição das ajudas: “Não olham para a vida das pessoas. Se uma (pessoa) for mais de engraxar, recebe mais do que outra. A vida é assim”. Ainda que as pequenas vitórias tenham sido conquistadas sozinha, Cidália nunca se sentiu só no Bairro de Aldoar e diz ser feliz ali, naquela que sempre foi mais do que uma casa, um lar. “Foi onde os meus pais me tiveram. Não me imagino a viver noutro sítio”, diz.

Mãe aos 18 anos, Cidália não estudou por opção. “Não me dava muito bem com a escola. Desisti. E depois de ter o quarto filho fui tirar o 9.º ano à pressa, mas nunca tive o meu pai a dizer ‘tens de sair da escola para ires trabalhar’. Isso não”.

Começou a trabalhar aos 16 anos como empregada de balcão e mesmo que agora não trabalhe por opção, explica que enquanto procurou emprego encontrou-o facilmente. “Eu tenho irmãos e eles também têm o dever de estar com ele, mas eu sou uma filha galinha. Filha e mãe galinha, Cidália não vê problema em criar também os filhos no Bairro que a viu nascer. Embora reconheça que ainda existe preconceito, não se revê neste, lutando sempre para não o merecer. “Em mim, eu não sinto (o preconceito). Há que ser do bairro, sim, mas também há que ter maneiras de falar. Não podem julgar 100 pessoas do bairro por causa de uma”.