A entrada no Ensino Superior e a adaptação a uma nova realidade – que inclui nova cidade, novos amigos e um novo nível de exigência académica – não são tarefas fáceis. No entanto, quando o curso é Medicina, tudo toma outras proporções. Afinal, “para além de um curso muito exigente, é um curso muito pretendido” em que é “muito complicado entrar”.

Quem o diz é Pedro Diogo, aluno da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP). A frequentar o 6.º ano do Mestrado Integrado em Medicina, lembra não só o nervosismo da entrada nesta nova etapa mas também “o percurso longo” que se sucedeu. “Há muita coisa para ser aprendida, muitas noções para serem ganhas”, diz. Depois, há a sensação de estar “a fazer uma coisa muito nobre e muito importante”, em que “tudo o que é feito na estrutura do currículo deve ser encarado com muita seriedade”, explica.

“[Ser estudante de Medicina] é uma fonte de ansiedade”

“Feliz ou infelizmente, acho que não sentimos constantemente esse peso sobre os ombros”, ressalva. “Mas claro”, sublinha, “é uma fonte de ansiedade para todos nós”. Uma ansiedade que aumenta “durante os exames” ou “no contacto com os pacientes” e empola com “a falta de confiança” e a “não-preparação” para o que vão enfrentar, acredita Pedro.

E depois há a competitividade. “À entrada viemos com a pressão de ter altas classificações mas também á saída temos um exame de especialidade exigente”, recorda. “Não é algo que seja manifestamente nefasto, mas é o ambiente que existe”, afirma.

Um ambiente e uma ansiedade que parecem latentes à grande maioria dos estudantes de Medicina e que já têm vindo a ser documentados em alguns estudos, mas que uma equipa do Departamento de Neurociências Clínicas e Saúde Mental da FMUP quer agora estudar mais a sério.

“To be a doctor” quer avaliar a componente psicológica dos futuros médicos

A investigação chama-se “To be a doctor (Medical education: a longitudinal study of students satisfaction, performance and psychosocial profile)” e é um projeto pioneiro que pretende seguir um grupo de estudantes desde o 1.º ano do curso – “um período muito interessante” – até aos primeiros anos de prática clínica – “mais uma transição”. O objetivo é “avaliar como é que a componente psicológica destes alunos resiste ao passar do curso”, explica Margarida Braga, líder do grupo.

A amostra

A investigação já começou em 2013 com um estudo mais informal, em que começaram por ser avaliados “dois grupos de estudantes de 1.º e 2.º ano”. Entretanto, começaram a ser estudados também os alunos de primeiro ano de 2014/2015 e “assim será sucessivamente enquanto tivermos meios”, garante. A equipa, agora composta por cerca de 10 pessoas, vai “avaliar todos os alunos que se disponibilizarem para ser avaliados”, sendo que a “participação é completamente voluntária”. Atualmente, estão em estudo 900 alunos. “1200, se contarmos com os do estudo inicial”, afirma Margarida.

“Por muito que estejamos a aplicar estratégias de ensino padronizadas, os alunos recebem-nas de maneira diferente, de acordo com a sua personalidade, o seu passado, as suas experiências…”, conta. “A partir de uma certa altura, com base naquilo que tínhamos vindo a ler, percebemos que esta poderia ser uma população com algumas características específicas que estão associadas a alguns traços de personalidade e que eventualmente os colocam sob maior stress”, afirma. “Por serem muitos bons alunos, por serem jovens muito focados nos seus objetivos, com grande capacidade de trabalho…”.

O burn out, ou seja, “algumas situações de stress já com maior desgaste”; e os “fatores de resiliência” destes estudantes, ou “o que lhes permite lidar com esses desafios”, são outras componente que o estudo pretende abordar. “O suporte social, por exemplo, é um dado reconhecido [nestes casos], que funciona como um amortecedor desse stress, por isso queremos avaliar como se desenvolve a rede de relacionamentos sociais e afetivos”, explica Margarida.

Um estudo que “alerte os alunos e lhes faculte forma de se protegerem”

São, pelo menos, nove anos de estudo que vão permitir a Margarida Braga e à sua equipa caracterizar a experiência de cada aluno – e compará-la entre si e no geral – tendo em conta as características pessoais (género, personalidade, experiência pessoal, capacidade de comunicação, forma de lidar com o stress…) e de contexto (exigências curriculares, atividades de lazer, relacionamentos afetivos e suporte social), a performance académica e a satisfação com o curso.

O método

Existirá “uma recolha quantitativa, com questionários standardizados“, uns construídos para o efeito outros traduzidos para a população portuguesa”. As entrevistas também poderão ser adoptadas ainda “que num número mais restrito de indivíduos, já que “permitem resultados mais qualitativos”. O mesmo para avaliação “laboratorial”: Apenas “a um subgrupo de alunos vão ser pedidas colheitas de sangue para determinar alguns marcadores biológicos relacionados com o stress e que podem sinalizar algumas situações de maior risco”, explica Margarida.

“A maioria dos estudos são transversais: observam aquela população como uma fotografia estática. Nós achamos que é muito mais produtivo e muito mais útil do ponto de vista científico acompanhá-los ao longo de um percurso”, explica Margarida. O objetivo é que este seja, de facto, “um estudo valioso” com resultados práticos que “alerte os alunos e lhes faculte forma de se protegerem” e que tenha efeitos práticos.

“Queremos exportar as nossas conclusões para influenciar, naquilo que for possível e viável, o percurso académico destes estudantes, no sentido de criar para os alunos condições favoráveis ao seu bem estar psicológico e à sua saúde física”, junto da própria instituição. No entanto, “nós sabemos que a população médica e os próprios alunos de Medicina tendem a descurar o seu próprio bem estar, ou seja, há uma tendência para não haver a necessária atenção a eles próprios, aos cuidados com a sua saúde, e é também isso que queremos evitar”, sublinha a investigadora, permitindo aos “próprios alunos conhecerem a sua própria realidade e gerirem o seu dia-a-dia da melhor forma possível”.

“Não é suposto nem pedagógico” um clima de ansiedade numa escola médica

Pedro acredita que esta é “uma excelente iniciativa”. Afinal, “não é suposto nem pedagógico que o clima numa escola médica ou noutra escola qualquer seja um clima de ansiedade ou de tensão, mas acontece”, diz. E em Medicina, ainda pior. “Tem de se perspetivar uma mudança radical no ambiente de aprendizagem”, acredita. “Nós não vamos ser os melhores médicos que podíamos ser se continuarmos a aprender num clima destes”.

O futuro

“O desenho inicial do estudo prevê a comparação com outros grupos; alunos de outras faculdades, populações de jovens não universitárias e até alunos de outras escolas de Medicina”. Há já uma “colaboração desenhada com Braga” e outra com Aveiro, para “analisar parâmetros mais neurofisiológicos, como os padrões de sono [dos futuros médicos], por exemplo”. Está ainda a ser estudada a “possibilidade de fazer consórcios” com outros investigadores – inclusive de outros países, como o Brasil e o Reino Unido – numa tentativa de “rentabilizar o esforço e absorver alguns financiamentos”. Principalmente “para pagar aos investigadores, que neste momento não têm nenhuma forma de ser ressarcidos”, explica Margarida.

Há que repensar “a escola”, “metodologias de avaliação”, “docentes”, a forma como são “preparados para o primeiro contacto com o paciente ou com uma situação complicada” mas também há que relativizar, numa perspetiva de “responsabilidade partilhada”. “Também nos cabe a nós, estudantes, ter uma visão mais relativista e descontraída do que aqui estamos a fazer, sem de maneira nenhuma abater na exigência ou na seriedade do que fazemos”, diz.

A solução pode estar em apostar em outras atividades além do currículo escolar: “Quanto mais fazemos para além do curso, menos ansiedade e stress são gerados em nós pela exigência do curso ou pela dificuldade dos métodos de avaliação. É muito bom, seja associativismo ou voluntariado, até em termos de gestão de tempo e de prioridades”, afirma. “Não faz sentido nenhum nem tem qualquer impacto para o nosso futuro enquanto médicos que andemos desenfreadamente a estudar”.

Vice-presidente da Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM), sabe bem do que fala. O tempo é pouco para todas as atividades que lhe preenchem a agenda mas continua a ser um dos melhores alunos do ano que frequenta.