Dezasseis anos depois de ter apresentado a sua primeira curta-metragem, o realizador Miguel Gomes voltou a subir ao palco do Curtas Vila do Conde “As Mil e Uma Noites”. A abertura oficial aconteceu no fim de semana, com a projeção da primeira parte da trilogia (que no total dura seis horas) “O Inquieto”, e, antes da sessão, Miguel Gomes alertou: “É a primeira vez que mostro o filme no meus país e tem uma relação muito estreita com Portugal”.

Cerca de metade do auditório estava preenchido pela equipa de pessoas envolvidas na rodagem, entre atores (Joana Verona, Rogério Samora, Gonçalo Waddington), não-atores (como é caso do exterminador de vespas ou do professor Atita), produção (Luís Urbano) e técnicos. Alguns destes marcaram também presença nas projeções dos volumes seguintes, “O Desolado” e “O Encantado”, sábado e domingo à noite, respetivamente. Em todos os casos, as filas intermináveis – para entrar na sala ou para levantar bilhetes – foram constantes à entrada do teatro.

Gomes suporta-se da estrutura narrativa do livro homónimo para contar estórias criadas a partir de factos verídicos recolhidos por alguns jornalistas portugueses entre 2013 e 2014. Para Xerazade (Crista Alfaite), narradora oficial, estes relatos são a sua salvação, já que se não aguçar, noite após noite, a curiosidade do seu marido, Rei Sharyar, será morta. Como foram todas as virgens que, antes, aquele tinha sacrificado. A presença continuada de Xerazade é também uma forma de o cineasta traçar um elo entre os três episódios, algo que só acontece através dos atores, que vão sendo repetidos em diferentes personagens e momentos. Todas as estórias (alguns, sketches) sobreviveriam por si só, ou mesmo até enquanto curtas-metragens, e independemente da ordem: grau zero.

E se o realizador recupera algumas das ideias proferidas em “Aquele Querido Mês de Agosto”, como o aparecimento da equipa técnica e do próprio realizador, enquanto personagens ou mesmo a utilização de não-atores, corta radicalmente com Tabu. Aliás, curto-circuito é, provavelmente, o termo que mais caracteriza “As Mil e Uma Noites”. Num exercício livre, o compromisso é deixado de fora e há espaço para tudo: para o humor brejeiro mascarado de alegoria (quando se questiona a impotência sexual de Pedro Passos Coelhos e dos elementos da troika), para a tragédia contada na primeira pessoa, para a caricatura de um Portugal ainda rural (um galo condenado) sob a forma de western (um homicida em fuga que mais parece estar a gozar férias e acaba detido em casa).

Simão Sem Tripas acaba por ser o mais cinematográfico dos relatos, muito graças à interpretação de Chico Capas, um ator que não é ator, e que também faz de si mesmo num outro capítulo. Gomes particulariza, aproxima-se de vários e determinados micro-cosmos e reinventa-os para conseguir um retrato de um país cujo governo é “aparentemente” desprovido de sentido de justiça social, como lembra ao início de cada capítulo.

A influência de João César Monteiro torna-se evidente ao longo do filme: o sarcasmo, o non-sense ou mesmo o imaginário das ninfas desnudas. Aliás, o travelling de abertura de “As Mil e Uma Noites”, sobre o cais dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, cita o travelling de abertura de “Recordações da Casa Amarela”, este sobre o cais do Tejo. Curiosamente, Gomes opta por sonorizar esta cena com excertos de declarações de antigos trabalhadores dos estaleiros. Lado-a-lado, cruzar-se-ão a história do exterminador de vespas asiáticas, que dizimaram as colmeias de abelhas, e a história dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, também eles exterminados.