No centro do Porto, num edifício pertencente à Faculdade de Engenharia, cerca de 80 jovens arriscaram começar um curso novo. Não havia ninguém de anos anteriores a quem recorrer, para saber o que se podia esperar de Jornalismo e Ciências da Comunicação (JCC). Até se ter tornada pública a chegada de um curso de jornalismo ao Porto, Ana Isabel Pereira, atualmente jornalista no Jornal de Notícias, esteve sempre atenta. “Andei ali dois, três anos sempre na expetativa. É este ano que abre? É este ano que abre? Mesmo até ao meu último ano, ao meu 12.º ano, havia dúvida se o curso público ia abrir e portanto a alternativa era ir para a Escola Superior de Jornalismo”, conta Ana Isabel, que nunca teve dúvidas de que era o jornalismo que queria seguir.

O começo do ano letivo foi sendo adiado, mas em novembro lá começou. “O início foi muito confuso. Só começamos as aulas em novembro, penso eu. Pensávamos que as aulas eram na Faculdade de Letras, eu aluguei uma casa perto da Faculdade de Letras, quando soubemos que não era lá fomos parar um bocadinho perdidos a Coronel Pacheco”, recorda Tiago Reis. Tiago é hoje responsável pelo portal de notícias da Universidade do Porto e diz que o início foi complicado. “Costumamos dizer que fomos as cobaias”, brinca.

E a verdade é que, inevitavelmente, o primeiro ano foi desafiante. Era um mundo novo, tanto para os alunos como para todos os envolvidos no projeto e ninguém sabia muito bem o que esperar. “Eu fui parar um bocadinho por acaso ao jornalismo, apesar de ter escolhido a opção jornalismo em todas as opções que me permitiram preencher para me candidatar. Mas não tinha uma ideia muito concreta daquilo que ia encontrar, na altura o único jornal que lia era o Jornal da Letras e portanto estava totalmente distante e não sabia muito bem o que esperar do mundo do jornalismo”, relembra Catarina Santos. Foi a imprensa que motivou Catarina a escolher a área, mas ao longo do curso percebeu que “brincar com os sons” era algo que lhe dava “muito prazer” e acabou por ir estagiar para a rádio Renascença, onde hoje trabalha.

Apesar de “um início um pouco aos solavancos”, como descreve João Carlos Malta, as coisas começaram a fluir. “Não estava em condições não só em termos de infraestruturas, mas também do corpo docente, faltavam professores e houve cadeiras que não arrancaram logo. Mas acho que é como tudo aquilo que está a arrancar, as pessoas também tinham bom senso para perceber aquilo que estava a acontecer”, considera João, que hoje ocupa também lugar na Renascença.

As dificuldades

Antes de passar para o edifício em que está hoje instalado, o curso JCC funcionava no edifício contínguo que fazia, na altura, parte de Engenharia. As salas não chegavam para tanta gente. Por vezes os alunos tinham até, segundo Tiago Reis, que se espalhar pela escadaria do edifício para fazer os exames, pois não cabiam todos na sala. “Havia ainda muitas dificuldades em termos de equipamentos, eu lembro-me que nós tínhamos jornalismo online e no início não tínhamos internet. Portanto tínhamos jornalismo online sem internet, que era uma coisa curiosa”, conta.

Não havia estúdios de televisão, pelo que algumas aulas eram dadas na Escola Superior de Jornalismo. O equipamento era escasso para a realização dos trabalhos e os alunos tinham de partilhar o que tinham. Na mesma sala funcionava a secretaria, a reprografia, a biblioteca e até a sala de convívio. Ainda assim, tudo isso contribuiu para que as relações humanas fossem valorizadas. “Não ficamos prejudicados pelo curso ainda estar em construção. Acho mesmo que criou esse espírito de desenrasque entre toda a gente e foi bom”, diz Catarina.

Um lugar de afetos

Ainda que o curso de Ciências da Comunicação faça parte da Faculdade de Letras e seja um projeto integrado de quatro faculdades: Letras, Engenharia, Belas Artes e Economia, as aulas sempre foram dadas em Coronel Pacheco.

Com 17 e 18 anos, a imagem do que seria o mundo universitário – um espaço grande e cheio de gente – rapidamente se dissipou. Eram apenas 80 alunos, num projeto ainda a apalpar terreno para crescer. Ana Isabel Pereira relembra que era tudo “realmente pequenino e tinha coisas boas por ser pequenino”. “Isto é um cliché, mas era mesmo familiar e uma família. Nos intervalos havia gente a jogar à bola no pátio que já era na altura o parque de estacionamento, gente a escapulir-se para jogar aos matrecos”, narra.

“Nós éramos menos que em qualquer escola secundária que tivéssemos andado. Portanto como tudo, inevitavelmente, o espírito e os laços entre as pessoas foram-se fortalecendo”, diz João Carlos Malta que o que mais recorda é o espírito de família que foi criado.

“O facto de estar ali um bocadinho isolado, às vezes pode ser prejudicial, mas também acho que contribui para aquilo que é a identidade do curso. Se tivesse em Letras, era lá mais um departamento perdido no meio daquele edifício”, afirma Tiago Reis.

O ambiente familiar e a união são por todos recordados com saudade. Se por um lado os escassos recursos materiais e as dificuldades os obrigavam a trabalhar em equipa, o espaço reduzido fazia com que, inevitavelmente, os laços se fossem entrelaçando, quer entre os alunos, como também com os próprios professores e funcionários.

“Com a esmagadora maioria dos professores havia muita proximidade. Não havia nada aquela distância típica, ou que pelo menos eu imaginava que seria o mundo da faculdade. Isso nunca senti, era muito fácil falar com eles, eram muito acessíveis”, conta Catarina Santos. Da mesma opinião é João Carlos Malta. “Acho que não é assim tão comum como foi naquele primeiro ano, ou nos primeiros dois anos, ver os professores, uma parte considerável dos professores, a ir conviver connosco nos nossos jantares de curso, a divertirem-se connosco, a partilharem experiências connosco e que marcaram laços”, partilha.

Pouco a pouco, esses laços foram-se fortalecendo. O sentimento de família acabou por ser, para a maioria, uma das grandes mais-valias de JCC. “Um curso universitário é isso mesmo, é abrir-nos portas e enriquecer-nos humanamente”, remata João Carlos. E foi isso que aconteceu. Já se passaram 15 anos e ainda hoje, sempre que possível, juntam-se para recordar esses momentos: as festas que foram organizadas, como o São João ou o Natal, as noitadas passadas na sala de informática a fazer os trabalhos e as pessoas: o Sr. Loureiro da reprografia, o Sr. Coelho, a Ana Paula da secretaria, os técnicos João Abrunhosa e o Ricardo Fortunato e, claro está, os professores.

“Lembro-me que fui fazer uma reportagem para o Estado Novo, a discoteca, nunca lá tinha entrado e nunca mais lá voltei a entrar e foi com o João precisamente. Eram 4h da manhã, fomos os dois para lá. Ele ia de fato de treino e ia de sorriso feito porque no fundo gostava muito de fazer aquilo, também era muito importante ter essas pessoas que nos ajudassem”, relembra, entre risos, Tiago Reis.

“O Sr. Coelho é uma personagem clássica do curso e tínhamos todos muito carinho por ele. Ele era muito paciente, até ao limite. Ele tinha sempre o comboio para apanhar ao fim da tarde e nós às vezes ficávamos lá a fazer trabalhos e ele estava a olhar para o relógio, por detrás do seu bigode, assim a dizer ‘têm que ir, eu tenho de ir embora’ ”, recorda Catarina.

Os quatro “pioneiros” lembram ainda alguns professores marcantes e determinantes para a sua formação. Entre os quais “a pessoa de referência” para os estudantes, a professora Helena Lima, “sempre acessível e disposta a ajudar”, o professor Richard Zimler, com quem era “muito fácil criar empatia”, o professor Milan de Rados que ajudou a “destruir alguns pequenos mitos”, entre outros, como o professor Pedro Leal e Jorge Campos.

Um curso virado para o futuro

Com esta viagem pelo tempo, os primeiros alunos de JCC lembram ainda que na altura, “já se falava muito na importância de ter um curso muito prático, muito virado para o mercado de trabalho”, como explica Ana Isabel, co-fundadora do jornal Porto 24. Assim, recordam que a valência prática do curso e a possibilidade que lhes oferecia de trabalhar diretamente no terreno, foi – e ainda é – uma mais-valia para a licenciatura.

Já mais para o fim do curso, na altura de quatro anos, todos se questionaram de como seria dali para a frente. Até então, ainda estavam, como refere Catarina Santos, envolvidos numa “bolha protetora”. “Eu lembro-me, eu acho que no início do quarto ano, ainda não era certo que houve estágio no fim. Mas depois conseguiram, a direção do curso conseguiu arranjar protocolos que garantissem estágios para toda a gente”, conta a atual jornalista da Renascença. Ainda que já tivesse escolhido o Jornal de Notícias como local de estágio conseguiu depois uma vaga nessa rádio e aí sim, “ter o choque com a realidade do mundo do trabalho a sério”.

Foi com a ideia de seguir jornalismo televiso que Tiago Reis entrou para JCC, mas rapidamente essa ideia se dissipou. Estagiou no jornal Público e, já depois de sair do curso, coordenou o JPN e a JPR, dois projetos que nasceram da vontade de alguns professores e que considera, em suma, “extremamente benéficos para os estudantes”.

Apesar dos entraves que surgiram no princípio, a grande maioria dos estudantes conseguiu “encontrar o seu lugar” e, de acordo com Ana Isabel Pereira, nada disso era possível sem a preparação que os estudantes tiveram. “Uma dose será sorte, mas acho essencialmente que a nossa formação era boa”, indica.

Se já na época se colocava o jornalismo numa área com um mercado de trabalho em crise, hoje em dia o quadro agravou-se. Ainda assim, João Carlos Malta relembra que o mais importante é “permitir abrir outras portas” e, se o sonho existe, que não se desista. “Vai haver espaço para alguns, não vai haver espaço para todos. Tentem ser esse algum. Porque é de facto é possível”, indica o jornalista da Renascença, numa nota aos atuais alunos.

No fim, ficam as pessoas. Passados 15 anos, os jantares acontecem sempre que possível, o que nunca é fácil, uma vez que todos têm vidas e compromissos. As redes sociais permitem o contacto com aqueles que estão mais longe. Catarina Santos afirma: JCC deixou uma marca. “Continua a ser “nós”, porque pronto, é uma coisa que marcou-nos bastante, acho eu, naquele início”.