Falar de Shakespeare em 2016 implica acrescentar ao nome do poeta e dramaturgo três dígitos: 400. No ano do quadricentenário da morte do autor, que, tanto quanto se sabe, nasceu e morreu no mesmo dia, o Teatro Nacional de São João junta-se à celebração e organiza um seminário orientado por Ana Luísa Amaral.

O evento arranca no sábado e as sessões prosseguem ao ritmo de uma por mês, até junho. Em conversa com o JPN, a poetisa Ana Luísa Amaral explica a escolha das seis obras que vão ser alvo de uma “leitura atenta”. Uma em cada sábado ao longo de seis horas.

“Eu tentei cobrir, dentro da vasta obra de Shakespeare, diferentes peças que fossem representativas das tragédias e das comédias. Vamos começar com ‘O Mercador de Veneza’, que é uma grande comédia, e que é uma comédia problemática de Shakespeare, porque já tem elementos trágicos; continuamos com uma grande tragédia, que é o ‘Rei Lear’; passamos para a comédia romântica, com ‘A Tempestade’, depois para uma tragédia histórica românica, que eu acho que era necessária, que é ‘Júlio César’, uma peça muitíssimo atual. Em penúltimo lugar, outra grande tragédia, ‘Macbeth’, que é profundamente política. E para terminar, aquela que é considerada uma das grandes tragédias de Shakespeare, que é de amor, provavelmente a mais conhecida do grande público, que é ‘Romeu e Julieta’”, conta a autora.

A escolha não era simples. “Era possível que estas seis sessões fossem todas só sobre um soneto”, garante a autora. “Há outras grandes tragédias. Eu podia ter escolhido ‘Otelo’, eu podia ter escolhido ‘Hamlet’, e não, porque penso que as peças escolhidas, de uma forma ou de outra, dialogam muitíssimo com o nosso tempo”, conclui.

Shakespeare 400

A iniciativa tem um número limitado de participantes, pelo que deve ser feita uma inscrição prévia através do e-mail [email protected] ou do telefone 22 340 19 56.

Cada sessão decorre entre as 10h00 e as 13h00 e entre as 14h30 e as 17h30.

Os participantes podem frequentar apenas um módulo, pelo preço de 25 euros, ou todo o seminário beneficiando, nesse caso, de descontos.

Shakespeare “surpreende-me sempre”

Ana Luísa Amaral já leu e ensinou muito Shakespeare. A professora associada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto em Literatura e Cultura Inglesa e Americana, agora aposentada, já o traduziu, também. Recentemente publicou “31 sonetos de Shakespeare” (Relógio d’Água) e continua a surpreender-se com o autor.

“É que Shakespeare tem tudo. Encontra lá tudo. As mais básicas emoções humanas – o ódio, o amor, a paixão, o ciúme, a inveja, a ambição – tudo isto está brilhantemente trabalhado em Shakespeare, através do quê? Da linguagem”, analisa.

“A linguagem [de Shakespeae] é de uma riqueza notável. Nós agora até podemos ver uma peça de Shakespeare num teatro pequenino, mas naquele tempo as peças eram feitas para muita muita gente. Os teatros levavam muitas pessoas. Portanto, era necessário que a palavra – essa é uma grande diferença para Gil Vicente, por exemplo, porque Gil Vicente escrevia para a corte – e as obras de Shakespeare são escritas tendo como destinatários uma vasto leque social, que vai da aristocracia até ao povo”, prossegue.

Para Ana Luísa Amaral “aquilo que faz a grande literatura é a capacidade de nos mover. Move-nos no sentido de nos comover, mas também no sentido de nos mover. Convida-nos a agir, convida-nos a fazer algo. A pensar”. Isso acontece-lhe com Shakespeare como lhe acontece com Emily Dickinson. “Fiz uma tese de doutoramento sobre ela, conheço-a de trás para a frente e continuo a ficar emocionada de cada vez que leio certos poemas de Dickinson”, conta-nos.

A vida e a obra de Shakespeare são um território com muitas zonas desconhecidas. As dúvidas começam na data de nascimento e acompanham boa parte da vida privada e até da vida literária do autor. No final, a obra é mais forte.

Se tivesse a oportunidade, Ana Luísa Amaral também não se preocuparia tanto com esse lado enigmático. Gostava de ver o poeta, o escritor.

“Gostava de me poder sentar ao lado de Shakespeare e de o ver a escrever um soneto, como aquele anti-petrarquista tão bonito: “My mistress’ eyes are nothing like the sun”; ou vê-lo a escrever um excertozinho de uma peça ou aquele diálogo extraordinário no Rei Lear entre Lear e Cordélia, em que Lear pede a Cordélia, a filha mais nova, que lhe diga como o ama, de uma forma mais expressiva que as irmãs, e ela lhe responde com esse extraordinário: “Nothing, my Lord”. E o poder que tem esse nada. Gostava de vê-lo a escrever e de ver como conseguiu deixar-nos aquilo que nos deixou”, afirma Ana Luísa Amaral.

A obra de Shakespeare, diz, “continua a fazer todo o sentido, e a mover-nos também para a ação e para tentarmos à nossa medida, muito particular, muito individual, pensar um mundo melhor”.