“Não é pelo facto de haver eutanásia que há menos cuidados paliativos”, afirmou esta terça-feira Jaime Teixeira Mendes. O debate sobre a eutanásia promovido pela Ordem dos Médicos rapidamente se transformou no debate especializado em cuidados paliativos. A opinião do presidente da Secção Regional do Sul da Ordem dos Médicos foi partilhada pelo painel de oradores composto por seis médicos de diferentes áreas.

Em Portugal, apenas cinco mil doentes têm acesso a cuidados paliativos por ano, num universo de 60 mil a 70 mil doentes terminais com necessidade de acompanhamento. Os números foram avançados pela Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos e lidos no debate por Edna Gonçalves, Diretora do Serviço de Cuidados Paliativos do Centro Hospitalar de São João. “Apenas cerca de 20 a 30% dos doentes têm acesso a estes serviços. É necessário constituir novas equipas, porque o sofrimento por doença avançada e progressiva acontece a todas as horas da noite”, afirmou.

É fácil que o debate recaia sobre os cuidados paliativos, concordou o painel, uma vez que estes podem minimizar o recurso à prática da eutanásia. Quanto à sua legalização, as opiniões dividem-se.

A favor: direito à morte digna

O tema da eutanásia voltou à ordem do dia após a divulgação, a 6 de fevereiro, do Manifesto “Morrer com dignidade”. O documento, assinado por 112 personalidades de diversas áreas, defendeu “a despenalização e regulamentação da Morte Assistida como uma expressão concreta dos direitos individuais”. Está também disponível para subscrição pública através de uma petição online. À data, mais de 5800 pessoas subscreveram o documento que pede a discussão e promoção em breve da questão na Assembleia da República.

“Devolver ao doente ou cidadão o poder de decidir sobre a sua vida”: é este o ponto de vista de Jaime Teixeira Mendes. O Presidente da Secção Regional do Sul da Ordem dos Médicos defendeu que, cada vez mais, os doentes estão informados sobre o seu estado de saúde e estão mais aptos a tomar decisões. O médico afirmou que as novas tecnologias e o acesso fácil à informação alteraram a relação médico-doente, na qual este último “chega a discutir a terapêutica”.

À semelhança do que acontece nos três países europeus onde vigora a eutanásia, Jaime Teixeira Mendes defendeu a criação de comissões de médicos para acompanhar a decisão dos “cidadãos”, recusando que “esse poder possa ser de um médico só”.

O médico acrescentou que a legalização da eutanásia “não obriga ninguém a fazê-lo”. Jaime Teixeira Mendes compara a situação com a despenalização do aborto, em vigor desde 2007. Desde então registou-se uma diminuição do número de interrupções voluntárias da gravidez. “Eu defendo a autonomia do cidadão e que cada um tenha direito de decisão sobre o seu corpo”, rematou.

Para Rui Nunes, a eutanásia não é, de modo algum, “homicídio por compaixão”. O especialista em bioética e sociologia médica defendeu que esta prática, caso seja legalizada, não deve implicar a alteração da ética médica. A eutanásia é, para o especialista, um “direito fundamental” do cidadão que não viola a ética e a deontologia profissional.

Contra: a “boa morte” e os perigos da eutanásia

O Bastonário da Ordem dos Médicos assume uma posição crítica sobre a legalização da eutanásia, apoiado na defesa do juramento de Hipócrates feito pelos médicos. “Um médico deve evitar tanto quanto possível o sofrimento das pessoas, mas defender a vida. Podemos e devemos adiar a morte das pessoas”, defendeu esta terça-feira.

José Manuel Silva acredita que a eutanásia é uma prática evitável, num país em que existe uma “boa morte” nos hospitais. “As dores são tratáveis e caso exista falta de autonomia é uma falha da sociedade”, acrescentou. O bastonário destacou ainda uma preocupação com as questões económicas que podem levar à prática da eutanásia: “É cruel as pessoas quererem morrer por serem um fardo para as famílias”.

O mesmo pensamento tem António Sarmento. O especialista em doenças infeciosas e professor na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto alertou para os perigos de uma “sociedade que corta em tudo o que é social”. O professor teme a sociedade oportunista e com “intuitos desumanos”, que possa por em prática a eutanásia por “dar menos trabalho e sair mais barato”.

O médico afirmou ser “absolutamente contrário à legalização da eutanásia”, que diz ser “o direito de induzir a morte de um doente por motivos de compaixão”. António Sarmento defende que existem “processos terapêuticos que permitem prolongar os tratamentos e a vida”.

Eutanásia na Europa

A eutanásia é uma prática regularizada em três países da Europa, curiosamente os três países que integram a organização económica Benelux.

A Holanda aprovou em abril 2002 a eutanásia ativa direta (a injeção de uma droga letal). Apenas o doente pode solicitar a intervenção, considerando que enfrenta um sofrimento “insuportável” e uma doença considerada incurável. É necessário o parecer de dois médicos. A Holanda foi ainda o primeiro país europeu a autorizar a eutanásia para menores de 12 anos, segundo critérios definidos por lei.

A Bélgica despenalizou a eutanásia em setembro do mesmo ano, em moldes semelhantes aos holandeses. A prática é, desde 2014, permitida a menores de idade “com capacidade de discernimento e vítimas de uma doença incurável”.

Em março de 2009, o parlamento do Luxemburgo aprovou a eutanásia, com parâmetros semelhantes aos anteriores, sendo apenas permitido a maiores de idade.

Vai abrir um doutoramento em Cuidados Paliativos FMUP

O Presidente do Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos reforçou a importância do debate sobre a eutanásia na generalidade para “acima de tudo informar antes de se tomarem decisões”.

Já o bastonário da OM teme que a sociedade civil não tenha uma “perceção correta sobre esta questão.” Edna Gonçalves, por sua vez, acredita que “os médicos têm um papel muito importante de formador da sociedade”.

No entanto, para ensinar é necessário aprender. A especialista em Cuidados Paliativos no Hospital São João destaca que nenhuma das oito escolas médicas do país têm uma disciplina obrigatória sobre a matéria nos seis anos de curso.

Rui Nunes, professor na FMUP, anunciou, durante o debate, um Doutoramento em Cuidados Paliativos que integrará a oferta da faculdade. O programa curricular será apresentado dentro de dois a três meses.

Bastonário da Ordem dos Médicos defende referendo

O painel defende a realização de um debate “alargado e plural”, que inclua a reflexão interna da classe médica, dos restantes profissionais de saúde e da sociedade. A possibilidade de realizar um referendo sobre a eutanásia, à semelhança do realizado com o aborto, é uma ideia defendida por José Manuel Silva.

O debate realizado esta terça-feira na Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos contou com a participação dos oradores Jaime Teixeira Mendes, Edna Gonçalves, Isabel Ruivo, António Sarmento, Rui Nunes, José Manuel Silva e moderação da jornalista Paula Rebelo, da RTP.

A Ordem dos Médicos deixou a promessa de realizar novos debates sobre o tema.

 

Artigo editado por Filipa Silva