Numa altura em que os Direitos Humanos em Angola são postos em causa no país e no mundo, o JPN fala com Luiz Araújo, “um dos primeiros a qualificar Angola como um regime ditatorial”. No fim da conversa sobre Angola e sobre o caso dos 17 ativistas condenados, ficam duas ideias-chave: “não há movimento sem estrutura” e “o foco da defesa dos revús [denominação angolana para jovens ativistas] devia ter sido outro”.

Luiz tem 62 anos. Há quase quatro que dá música às ruas do Porto. Veio de Angola para Portugal em 2011, quando estar lá deixou de ser “saudável”. Já cá tinha estado entre 2007 e 2010, por razões semelhantes. Na altura, era coordenador de uma organização de defesa dos Direitos Humanos que trabalhava com questões do direito à terra e à habitação. “Havia desalojamentos em massa, forçados, feitos por projetos do governo, por pessoas próximas ao governo e a atividade da SOS Habitar era acompanhar isso”, conta o luso-angolano.

O acompanhamento da realidade angolana levou-o à prisão, ao exílio, tornou-o alvo de perseguição e culminou numa tentativa de homicídio. De acordo com Luiz, antes de vir para Portugal, um dos guardas da sua casa e escritório denunciou que “havia alguém que o estava a tentar convencer a facilitar um atentado” contra Luiz.

O JPN teve acesso aos vídeos que registaram as chamadas do guarda, Chipopolo, com um indivíduo identificado como Camati, que lhe dava instruções acerca dos planos contra Luiz. A ideia seria os indivíduos entrarem como bandidos na casa de Luiz para fazerem um assalto e, quando este reagisse, dar-lhe um tiro. “Liquidavam-me”, diz ao JPN. O então coordenador da SOS Habitar iniciou uma queixa-crime, mas as autoridades nunca chegaram a avançar.

Passados alguns anos, já na segurança da casa do Porto, Luiz tem a certeza de que o que motivou esses planos foi a atividade que exercia, e de que quem os manobrava era alguém do poder. “Quem mais poderia ser? Não tinha problemas pessoais com ninguém”, constata, acrescentando que o clima de perseguição se intensificou quando regressou da Europa, onde esteve entre 2007 e 2010, a denunciar as violações de Direitos Humanos em Angola.

Jipe que seguia Luíz Araújo sempre que saísse de casa 09/09/2009

Jipe que seguia Luiz Araújo sempre que saísse de casa
09/09/2009

Quando Luiz regressou a Luanda passou a ter, à porta de casa, “um jipe Rav4, com quatro indivíduos parados o dia inteiro”. Se saísse de casa acompanhavam-no pela cidade, o que explica que, “durante pelo menos 8 meses”, tenha saído apenas “quatro ou cinco vezes”. Da última vez que saiu foi para não mais voltar.

A cumplicidade europeia na violação dos Direitos Humanos em Angola

Luiz contou que, nos três anos em que esteve ausente do seu país, marcou presença em vários fóruns, em Londres e Bruxelas, onde, além de denunciar “os abusos de poder” cometidos em Angola, denunciava “as cumplicidades dos governos europeus”.

“Os governos tinham obrigações por causa dos acordos entre a União Europeia e os países da ACP [África, Caraíbas e Pacífico], mas calavam a boca sobre Angola por causa dos interesses económicos”, critica Luiz.

Luiz no 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos

Luiz no 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos

Na sua opinião, essa conivência continua a existir, e ainda que ultimamente tenha suscitado “mais barulho” e “tomadas de posição oficiais”, Luiz lamenta que não haja sequência, ressalvando “os setores tradicionalmente solidários do BE”.

“Os movimentos solidários começam a surgir quando Angola entra em crise e deixa de ser a Árvore das Patacas”, nota o ex-condenado. Antes da descida do preço do petróleo, Angola era o quarto mercado mais importante para Portugal, sendo que, neste momento, ocupa a sexta posição. “Isto vem num momento coincidente. Se antes se calavam por interesses económicos, hoje falam porque esses interesses já caíram”.

O petróleo e as causas da crise financeira

“É uma das, mas não é única”. É assim que começa a resposta de Luiz Araújo quando questionado sobre o facto do petróleo poder ser a causa da crise financeira em Angola. “Há na incapacidade de gestão e na governação inadequada uma causa principal”, remata. Na visão do luso-angolano, o governo apostou num produto, mas não usou os “recursos fabulosos que obteve com a sua exploração”, para o desenvolvimento dos outros setores da economia.

Para Luiz há outros fatores que justificam a crise. Um deles é o facto de Angola, enquanto nação independente, ser um “país novo”, que conta com a “incapacidade de um povo que nunca experimentou a paz”. O outro é a “corrupção” e a “governação desonesta, feita por ladrões com a cumplicidade do mundo”.

Defensor acérrimo da independência do país, Luiz não deixa de confessar que, na época colonial, havia uma melhor distribuição de serviços, como saneamento e água, em comparação com os dias de hoje. O ex-ativista critica o facto de agora haver muito mais “incúria na gestão dos serviços públicos” e de existir “uma agenda de desenvolvimento feita para uma minoria”.

Tal como no tempo em que Angola era uma colónia portuguesa, “a maior parte das pessoas continua a viver em musseques [construções precárias] sem condições e com pobreza extrema”. Segundo Luiz, a administração não faz mais do que “colocar entraves à legalização das posses, da terra e das casas, para poderem expulsar os moradores quando precisarem desse chão para alguma coisa”.

Luiz Araújo conclui que Angola está submetida a uma “máquina administrativa do mal” e que “só viverá melhor quando não houver fatores de atraso, exploração e saque”, provocados pelo partido do poder, o MPLA, e pelo homem que o preside, José Eduardo dos Santos. “Tanto lutaram contra a turbulência, e agora são eles a turbulência”, lamenta.

O futuro do poder de Angola

Em 2017, Angola vai ter eleições para eleger o Presidente da República. O antigo membro das Forças Armadas Populares de Libertação de Angola do MPLA – entre 1975 e 1977 – diz que esse ato eleitoral “atípico” é “produto de um golpe palaciano dado por José Eduardo dos Santos”. Ao contrário do que a Constituição obrigava, o atual presidente nunca foi eleito nominalmente em eleições presidenciais, tendo sido sempre eleito como cabeça de lista do partido mais votado.

Ainda que o atual Presidente da República angolano já tenha vindo a público dizer que, em 2018, se vai retirar da vida política ativa, Luiz não se convence. “Vai ser o candidato de 2017 pelo MPLA e vai sair no ano seguinte? Não. Isto, tal como o ‘caso dos 15+2’, não passa de uma manobra de diversão para distrair o mundo de outros assuntos”, aponta Luiz.

Caso não seja José Eduardo dos Santos o candidato do MPLA para as eleições do próximo ano, Luiz não descarta a hipótese de Isabel dos Santos, que “de repente começa a aparecer à frente de muitas coisas [Sonangol e Plano Diretor de Luanda]”, vir a suceder o pai.

Seja pai ou filha, Luiz está convencido de que “o MPLA vai ganhar porque aquilo é uma ditadura, e numa ditadura só o partido do ditador é que pode ganhar eleições”.

A falta de estrutura

Segundo o ex-condenado , há uma “constante atitude repressiva do poder contra tudo o que seja crítico e tudo o que seja estrutura”. Luiz Araújo diz que se pode falar e criticar mas que, “no momento em que se começa a estruturar e se começa a fazer movimento, está o caldo entornado”.

A falta de estruturação é precisamente uma das críticas que Luiz faz aos ativistas do “caso 15+2”. “Eles são anti-organização, porque organização implica hierarquia e eles não querem ter capitães. Mas isso é um também um tipo de tirania”, argumenta Luiz, enquanto indica um artigo que explica a teoria. O ex-condenado vai mais longe e afirma que “a situação em que esses ativistas estão é consequência da falta de organização”.

Caso 15+2: “É legítima a intenção, o ilegítimo está no poder”

Cerca de dois meses antes da detenção dos ativistas, Domingos da Cruz, um dos condenados, enviou a Luiz Araújo o manual que os quinze estavam a ler e a discutir quando foram detidos. Luiz leu-o, assim como leu o livro de Gene Sharp que serviu de base para a adaptação de Domingos da Cruz à realidade angolana.
“Eles estavam a estudar técnicas para as aplicarem no futuro, para promoverem e realizarem uma movimentação que alterasse aquela situação”, esclarece Luiz ao JPN.

“A ação deles é legítima porque o ilegítimo está no lado do poder. A Constituição não consagra uma ditadura, consagra uma democracia”, expõe Luiz, realçando que “há uma doutrina inerente ao estado de direito que é o direito de resistência”. Luiz afirma que “qualquer cidadão tem a legitimidade de agir  para repor a ordem do Estado, ainda que essa ordem esteja a ser subvertida por quem o dirige”.

No que diz respeito à detenção dos ativistas, cujas atividades foram consideradas atos preparatórios de rebelião, Luiz diz ser legal, ainda que não a considere legítima.

No entanto, ainda que veja legitimidade nos atos dos ativistas, discorda da linha de defesa adotada pelos “advogados, acusados, e ativistas e solidaritas do mundo, que se focaram apenas na inocência de quem estava apenas a ler um livro”.

Luiz é da opinião que “a coerência e a honestidade intelectual e política” os devia ter obrigado a admitir que o seu objetivo “era derrubar a ditadura”. Luiz pensa que os ativistas, na sua generalidade, não tiveram “coragem para apontar o dedo ao ditador”, nem para assumir as razões pelas quais estavam a levar a cabo uma “tentativa de rebelião”. Para o luso-angolano, se os ativistas tivessem sido “honestos”, o julgamento podia ter levado outro “rumo”.

Impacto do “Caso 15+2” na sociedade

Depois de o JPN ter entrado na casa de Luiz Araújo, foi fácil perceber que, ainda que esteja a viver em Portugal há cinco anos, continua a contactar “ao minuto” com Angola. “Às vezes sou eu que lhes conto coisas de lá que eles ainda não sabem”, conta, entre risos.

Luiz considera que os movimentos revolucionários têm tido “pouco impacto” na vida da pessoas, sobretudo por dois motivos: a falta de tempo, uma vez que “as pessoas estão ocupadas a sobreviver ao dia a dia” e falta de uma estrutura que as informe e as junte a uma causa.

Luiz insiste na ideia de que “é preciso estruturação para ter milhares na rua” e de que “as estruturas fazem mover as coisas.” “O impacto e a movimentação não se fazem com dois apelos a partir do Facebook, uma entrevista na rádio Ecclesia ou na rádio Despertar, duas bocas de um amigo solidário e tens milhares na rua. Não tens. Nunca tiveste.”

“Os dramas humanos são os mesmos, uns são ignorados, outros não”

A dimensão pública da greve de fome de Nuno Dala não se compara à de Luaty Beirão. Luiz Araújo não entende porque é que “alguns passam o deserto quando pedem ajuda” e porque é que “outros são levados em mãos”. Na sua opinião, a costela portuguesa não explica, sozinha, a distinção. Se explicasse, ele próprio, luso-angolano, teria sido ajudado quando pediu ajuda.

A oposição: “Unidade de cavalo e de cavaleiro não é unidade”

Além de ser crítico do governo, Luiz Araújo mantém a mesma postura em relação à oposição. A inexistência de um “projeto de unidade nacional que possa confrontar o regime” é a maior crítica que tece. Luiz lamenta que haja muitos vícios nos partidos da oposição e que “a maior parte será tão corrupta como os governantes atuais”.

Além da oposição partidária, Luiz condena os opositores da sociedade civil, por serem “individualistas” e por quererem “autopromover-se”.

Ainda que assuma que se façam bons trabalhos de pesquisa e de investigação, o luso-angolano denota que “acabam por ser anulados por não gerarem dinâmica coletiva, por não moverem a sociedade.”

Contra os “vedetismos”, Luiz tem vindo a aconselhar ativistas angolanos a criarem “uma rede abrangente” e a “assumirem a luta”, como Agostinho Neto fez na altura do colonialismo e como ele próprio também fez.

Luiz já não quer ser líder de nada, hoje em dia fica pelas intervenções nas redes sociais. Apesar das saudades da terra onde nasceu e cresceu, não é “saudável” nem “ajuizado” voltar. E também não quer ficar.

Daqui a pouco tempo vai para outro país, com o cão que o acompanha para todo lado e com os instrumentos musicais a que se dedica todos os dias. Se o seu lado angolano o faz “parecer grande” e “no fim não ser nada”, o lado “criolo” de Cabo Verde – onde esteve exilado de 1980 a 1991 – fá-lo “simples” e “empenhado” no que gosta.

Enquanto o homem que fugiu da repressão em Angola não vai embora do Porto, a Praça Carlos Alberto vai estar sempre pronta a ouvir esse empenho.

Imagem Margarida David Cardoso

Artigo editado por Sara Gerivaz e Filipa Silva