O Coliseu está cheio e há no ar um ambiente frenético, quase impaciente pela chegada de Gilberto Gil e de Caetano Veloso. Na noite do Dia da Liberdade é simbólico assistir ao concerto dos baianos. São também eles o símbolo da luta pela liberdade do outro lado do Atlântico.

“Dois amigos, um século de música” em trinta temas, em duas horas. Dois intérpretes, duas guitarras e as bandeiras dos 26 estados brasileiros como pano de fundo. A acompanhar um repertório que inevitavelmente se funde com a história da música brasileira dos últimos 50 anos. Não é apenas um concerto, é uma aula de história sobre as terras de Vera Cruz e um relato das suas próprias vidas.

No dia que há 42 anos marcou o início do regresso de muitos exilados, “Back in Bahia” abre o espetáculo e conta uma história que é também familiar a muitos portugueses. Também Veloso e Gil estiveram longe da sua pátria quando a ditadura militar os obrigou a fugir para Inglaterra.

Segue-se “Coração Vagabundo”, num encontro de amores e desamores. Aliás, a mulher é presença constante nas letras dos músicos. Para além do universo feminino, também a revolução é palavra de ordem nas palavras de Veloso e de Gil. Durante os 21 anos de ditadura militar, os músicos foram precursores do movimento Tropicália, que procurava eco numa sociedade oprimida, através da influência pop e das correntes artísticas de vanguarda.

O concerto segue a duas vozes, que muitas vezes se fundem apenas numa, mas que dá espaço à individualidade de cada um. Em duas horas de concerto, o Coliseu nunca deixou de ouvir a guitarra de Gilberto Gil. Pelas mãos do baiano, a guitarra produz muito mais do que melodia, trazendo a percussão a um concerto acústico.

Há magia que emana do palco. Há uma cumplicidade que encanta os portuenses. É caso para perguntar o que é que os baianos têm. Têm um “namoro” musical com mais de 50 anos, que começou com “É de manhã”, em 1963. Se este é o tema mais antigo, as “Camélias do Quilombo do Leblon”, é a obra mais recente, criada no ano passado. Uma nota de Caetano sobre as camélias como símbolo da abolição da escravatura no Brasil. Um paralelo imediato com os cravos vermelhos da revolução portuguesa. De violão em punho, Caetano e Gilberto recordam, no dia da liberdade, a música como arma na revolução.

“Camélias do Quilombo do Leblon” foi criada em plena digressão. Caetano Veloso e Gilberto Gil fizeram-se à estrada para celebrar os 50 anos de carreira. “Dois amigos, um século de música” já percorreu mais de 21 países da Europa e da América, tendo passado pelo Festival EDP Cool Jazz no ano passado. Mais de 40 concertos que celebram a amizade que acompanhou também a evolução da carreira musical de Veloso e Gil.

O concerto avança e o público vai dando provas de que tem a lição bem estudada. Uma lição que se aprende por gosto. A prova é dada pelo uníssono em “Terra”, em “Sampa” e no clássico de Gilberto Gil “Toda menina baiana”.

Também no palco, os músicos distinguem-se pela entrega e pela partilha de temas. Gilberto Gil canta Caetano. Caetano Veloso canta Gilberto. “Esotérico”, de Gil foi quase apoteótico, sob o olhar cúmplice do companheiro. No final, Caetano brinda e saúda os presentes com o copo de vinho que o acompanhou todo o concerto.

Não faltaram músicas cantadas em inglês, em espanhol e em italiano. Não faltaram homenagens a outros intérpretes como Maria Bethânia, com “Marginália II”, e João Gilberto, autor de temas como “Triste” e “É Luxo Só”. E não poderia faltar o samba.

“Desde que o samba é o samba”, os baianos não poderiam deixar o palco do Coliseu sem uns passos de dança. É assim que Caetano e Gilberto se despedem dos portuenses, ao som de “A Luz de Tieta”.

Mas engane-se quem pensa que um concerto com Caetano Veloso acaba sem “Leãozinho”. Gilberto Gil deixa uma última mensagem, ao revisitar o clássico de Bob Marley, “Three little birds”. O baiano já com a voz rouca lembrou a máxima do mestre do reggae: “Don’t worry about a thing/ ‘Cause every little thing/ Gonna be all right”.

A dupla despede-se do Porto perante um público efusivo que contou com a presença de Rui Moreira. O presidente da Câmara do Porto foi uma das mais de três mil pessoas que lotaram o Coliseu. O espetáculo segue agora para o Coliseu dos Recreios, esta terça e quarta-feira.

Artigo editado por Sara Gerivaz