Faltavam poucos minutos para as 22h00 quando os olhares da plateia se direcionaram para o fumo inebriante de luzes vermelhas que surgiu em palco. A MC portuense surge por detrás de um quadro de ilustrações com “Jugular”, da “mixtape” “Capicua Goes West”. Com uma energia arrasadora, a “rapper” eletriza o público desde as primeiras rimas.“Medo do Medo”, do emblemático álbum homónimo de estreia, chega em força, mas não vem sozinho: traz a parceira e companheira de concertos. A “rapper” M7, amiga e braço direito de Capicua, surge em palco nos primeiros versos. As vozes das “rappers” sincronizam-se de imediato, numa canção sobre os medos que assombram as realidades quotidianas, a cidade e o país.É hora de presentear os fãs com “Sereia Louca”.

A malha que dá o nome ao segundo LP diz-nos “coisas estranhas ao ouvido” e confirma Capicua como figura incontornável da nova música portuguesa da sua geração. O público depara-se com uma enfeitiçante serenidade feminina que lhes sussurra versos com a atitude de quem sabe o que está a fazer.“Enquanto houver violência neste mundo para combater, vai continuar a fazer sentido continuar a cantar a ‘Medusa’”. Está o mote dado para a música que continua a conquistar corações. Confronta a violência doméstica com a culpabilização da vítima em rimas que pretendem por um ponto final na pressão sofrida atualmente por mulheres no mundo. O momento intimista aproxima o Rivoli e faz levantar as mãos da plateia, já emocionada.

“Maria Capaz” deixa o Rivoli a mexer, ajudado pela descarga da ira urbana que se faz sentir. Chega subtilmente, como não poderia deixar de ser, “Casa no Campo”, depois da “rapper” ter pedido aos fãs que visualizassem um bonito céu azul estrelado e uma cama de rede, já que “a primavera está a chegar”. Olhos para o alto, sorrisos íntimos no rosto. O ar fica cheio de música partilhada.

“Estamos perante a maior catástrofe mundial. Temos os refugiados, tempos difíceis no Brasil e na Angola há quem seja preso por ler um livro. A liberdade não se festeja uma vez por ano, faz-se todos os dias.” Capicua antevê a tão aguardada “Liberdade”, que canta antes da “Pedras da Calçada”. A penúltima música do concerto faz o público levantar-se, pela primeira vez, na noite desta quarta-feira.

“Vayorken” leva ao delírio o Rivoli a transbordar e ainda deixa tempo para um curto improviso entre as duas “rappers”. É a música que fez os fãs cantar a rir, com a convicção de quem quer afrontar o mundo.

As mensagens feministas vindas com uma aura de autenticidade ao longo da noite, as ilustrações feitas e transmitidas à plateia em tempo real por Vítor Ferreira e toda a envolvência sonora resultaram num concerto triunfal, que antecipou a banda da qual Capicua confessou ser fã desde que conhece o hip-hop.

No final do concerto, a “rapper” partilhou com o JPN que “continua a haver poucas mulheres no mundo do hip-hop”. Ainda assim, o que realmente importa para Capicua é que “as mulheres conquistem cada vez mais o espaço público e saiam do espaço privado para começar a abraçar outras responsabilidades e outros desafios de forma mais livre”.

Foi no hip-hop que Capicua encontrou a “tribo” da adolescência. “Foi onde encontrei o meu grupo de amigos, com que me identificava, e consegui encontrar uma forma de desenvolver os meus talentos. Primeiro no graffiti, depois no rap, até que encontrei uma identidade para mim própria”, confessou a portuense. “O rap acompanha-me já há mais de metade da minha vida e é a forma que eu encontro de fazer da minha escrita um veículo de mensagem para chegar às pessoas”, concluiu.

Os Dealema levaram ao Rivoli “o concerto das vossas vidas”

Mundo Segundo, Fuse, Expeão, Maze e DJ Guze chegam ao Rivoli para fechar a noite, num palco que parecia não lhes caber. A plateia, de imediato, não se poupa nos aplausos e no histerismo característico de quem está perante o grupo pioneiro do hip-hop português. “O Regresso do Expresso” não deixa a plateia sentar-se.

Segue-se “Ultimato” e continua a viagem no tempo até 2003, data de edição do álbum da banda que arrebatou a crítica e o público. Com a companhia da convidada Marta Ren, “Talento Clandestino” une as vozes dos fãs, numa das malhas que é revista à luz do tempo presente.

Os MC’s de língua afiada brindam o público, como não poderia deixar de ser, com “Bofiabofia”, música que dedicam a Emanuel Hayes, companheiro da banda e técnico de luzes.

“Façam da vossa escola aquilo que vocês querem que ela seja”, dá o mote a “Anatomia do Espírito”, música que alerta para a importância da educação dada nas escolas e para a importância de agarrar as oportunidades que surgem ao longo das vidas quotidianas. Expeão aproveitou para dedicar a “Anatomia do Espírito” ao filho, que se encontrava na plateia.

Os Dealema, com um extenso vocabulário, põem o dedo em múltiplas feridas e atuam com a energia de quem quer virar mesas ao contrário. “Este disco foi criado com 100% de verdade e 100% de pureza, no tempo em que ainda não existiam redes sociais. Na altura, quem queria criar um álbum, tinha de se moldar à sua editora e nós decidimos que não nos íamos moldar a ninguém. Sempre fomos independentes e fizemos tudo por nós próprios, sem nunca desistir”, contou a banda em palco aos fãs.

“Tributo” faz o momento intimista da noite. A malha do álbum homónimo surge dedicada a todos os amigos que se tornaram família ao longo dos 20 anos de carreira. “Esta é para todos”, dizem.

Maze, o MC que canta ao ataque, revela o quão bom é “jogar em casa”. Mundo Segundo apresenta a “Sala 101” e desafia a plateia a cantar a música do princípio ao fim, sem a ajuda da banda. O público, claramente, não desiludiu.

É altura de fazer um regresso à década de 90, altura em que se criavam estúdios em becos da rua. O palco não chegou a Mundo Segundo, que resolveu invadir a plateia a meio da malha repleta de vibrações características do hip-hop.

As luzes do Rivoli apagam-se para dar lugar a “Nada dura para sempre”, última música da noite. Os Dealema esperam que, nos 40 anos de carreira, a casa continue cheia e até, quem sabe, possam estar juntos “a tocar o álbum de 1996”. A noite termina com uma “selfie” da “família dealemática”.

Artigo editado por Sara Gerivaz