Filhas sem pecado

Filhas sem Pecado

Por dia, seis mil meninas são vítimas de Mutilação Genital Feminina. Apesar de ser associada a países subdesenvolvidos, a prática pode migrar com as comunidades para a Europa. Um ritual complexo, que não se limita ao corte. Uma realidade que também é nossa.

Esta é uma grande reportagem que explora, em quatro campos, uma das maiores violações contemporâneas dos direitos das mulheres. Um tabu, aqui com voz e rosto.

Filhas sem pecado
Filhas sem pecado
Filhas sem pecado
Filhas sem pecado

O Crime

São 99 as vítimas de Mutilação Genital Feminina identificadas pela Direção Geral de Saúde (DGS) em Portugal, de abril de 2014 a dezembro de 2015. Números que contrastam com a crença de que esta é uma realidade afastada do país. A DGS criou uma base de dados relativa à identidade das vítimas, que não está acessível ao público. Isto explica o facto de não serem apresentados dados concretos. Em vez de valores exatos, estão disponíveis médias relativas às idades das vítimas, compreendidas em intervalos grandes.

 
 

O estudo da DGS tem como base crimes não cometidos em solo nacional, nem com cidadãos portugueses. Mas até que ponto estão as autoridades portuguesas preparadas para identificar a prática? Fruto de várias reivindicações, a Mutilação Genital Feminina (MGF) é crime em Portugal desde agosto de 2015. A prática pode ser punida com pena de prisão de dois a dez anos. Quem preparar o ritual pode também ser condenado até três anos de prisão, segundo a legislação portuguesa. Patrícia Neto, jurista e membro da Associação Plano I (API), explica o que prevê a lei portuguesa.

1. O que prevê a legislação portuguesa relativamente à MGF?
2. Até quando a vítima pode apresentar queixa?
3. A quantos anos pode ser condenada uma fanateca?
4. Qual é a natureza do crime de MGF?
5. Há denúncias desta prática, em Portugal, desde que a lei foi alterada?
6. A MGF pode ser punida mesmo que a vítima dê consentimento para a prática?
7. Os profissionais da justiça portugueses estão preparados para este tipo de crime?
8. Há formação para a classe médica, as forças policiais e instituições judiciais trabalharem com casos de MGF?
9. Portugal dá Direito de Asilo a mulheres em risco de sofrer MGF?
10. Além da criminalização, o que pode ser feito para prevenir o ritual?

Créditos

Reportagem

Catarina Andrade, Cristiana Faria Moreira,
Margarida David Cardoso, Marisa Silva,
Mónica Moreira

Coordenação

Margarida David Cardoso

Produção Audiovisual

Alberto Seixas, Duarte Ferreira

Produção Multimédia

Pedro Candeias

Coordenação Editorial

Filipa Silva e Sara Gerivaz

Coordenação Geral

Isabel Reis

Aissato Djaló

Idade: 39 anos
Origem: Guiné-Bissau
Etnia: Fula

Cadija Baldé

Idade: 30 anos
Origem: Guiné-Bissau
Etnia: Fula

Diana Ferreira Lopes

Idade: 30 anos
Origem: Guiné-Bissau
Etnia: Manjaca

Mariama Djaló

Idade: 42 anos
Origem: Guiné-Bissau
Etnia: Fula


O segundo “m” no seu nome pode causar estranheza. Estranheza essa que se dissipa quando a voz forte atende o telemóvel. Sem possibilidade de realizar a entrevista pessoalmente, Mariama Djaló deu ao JPN uma entrevista telefónica, na qual coloca as suas cartas na mesa. Sem papas na língua, sem complexos, nem tabus. Mas com consciência e experiência própria de um fardo que carrega: o de nunca ter tido voto na decisão que afetou o seu corpo e a sua vida.

“Nós somos obrigadas. Não é uma coisa que se pergunte à pessoa: queres ir ou não? Ninguém podia tomar a decisão de dizer, olha eu não vou. Porque não nos é dada essa oportunidade, de nos pronunciarmos para dizer “Não gosto, não vou, porque acho que não devo ir”. Se as pessoas tivessem a consciência do que ia acontecer, se calhar a maior parte das pessoas não ia mesmo.
Só fomos avisadas de que ‘amanhã vão ser submetidas à prática, não sei o que mais’. E nós ficávamos contentes, na altura. Porque nós não tínhamos a noção do que lá ia acontecer.

Não podia ficar do outro lado para recusar e dizer que não ia.

Estávamos lá eu, a minha sobrinha, a minha outra sobrinha, uma outra prima: quase só familiares. Porque é assim, quando vão fazer a prática, comunica-se nas famílias. Então quem tinha uma menina em idade para submeter à prática, aproveitava a situação logo. Isto fez com que nós fossemos uma média de 15 meninas.

Na altura, achavam que se uma menina não fosse submetida à prática, ela não era pura. O pai de uma prima e vizinha minha é de uma outra etnia que não tem nada a ver com a prática. Quando nós saíssemos da barraca, ela não ia poder estar ao pé de nós. Ia ser discriminada. Então ela fugiu. Fugiu, foi lá à barraca ter connosco e foi submetida à prática.

É por isso que, na Guiné, não só nas etnias que praticam é que as meninas são submetidas à prática. Mesmo nas outras etnias, aproveitam-se daquela situação. Quando a pessoa não é pura, o que se diz lá na Guiné é ‘tu és blufo, não te podes aproximar das outras que já foram submetidas’.

Eu acho que eles acreditavam que era uma coisa boa. Porque se não tivessem acreditado, eles não nos iam submeter à prática.

Eu sou fula. Sim, eu fui submetida à prática, quando era criança. A idade mais ou menos, eu não me lembro, porque na altura era menor. Só me lembro que, na altura, quem cuidava de mim era a minha avó. Mas não faço a mínima ideia da idade que eu tinha na altura.

Nós ficamos em casa mesmo, não somos levadas para a mata. Nós ficamos ali durante dois meses. E o que se fazia lá era ensinar as meninas a como lidar com as pessoas mais velhas. Havia certos rituais que eram ensinados.

Podem até estar de acordo ou não estar de acordo, mas os pais não tomam decisão. São as mulheres. Inclusive uma mulher pode ter uma filha e a tia dessa menina, pega nela e leva-a para ser submetida à prática. E diz que ‘como minha sobrinha, tenho o direito de não sei quê, não sei quê’. A mim também não foi a minha mãe que me levou. Foi a minha irmã. Porque na altura a minha mãe estava longe e eu estava a ser educada pela minha irmã, que me levou juntamente com as filhas dela.

Antes mesmo de dar à luz, eu jurava que mesmo tendo uma filha, ela não ia ser submetida à prática. Depois de eu ter sido submetida, eu cheguei à conclusão de que isso não tem nada a ver com uma pessoa ser pura ou não.

A prática de MGF é conectada com a religião, para se poder impingir às pessoas, mas não tem nada a ver. Eu fiquei tão revoltada que eu nunca vou aceitar submeter a minha filha à prática. Mas na minha família, já há uns trinta e tal anos que a prática não se faz. Nós fomos as penúltimas que foram.

A maior parte da minha família são pessoas que estavam a estudar. É mais fácil uma pessoa académica ter a consciência do perigo e saber evitar a situação. Porque o exemplo deve partir de nós, para mudar a visão das outras pessoas.

É uma prática horrível. É doloroso. Independentemente de outros danos que pode causar à saúde da mulher, é uma situação em que basta recordar o momento que se fica nervosa. Fica revoltada.

É complicado trabalhar na prática da MGF e abordar a questão com as pessoas. [Em várias formações da Musqueba] achavam que as pessoas que falavam da prática tinham sido impingidas por brancos: ‘Isso é ideia de branca’, diziam. Mas nós também podemos chegar à conclusão que a prática não faz sentido nenhum.

É uma realidade que existe, apesar das pessoas não gostarem de falar no assunto. Se fores tu, a falar da prática junto da comunidade emigrante guineense, ninguém te vai dar ouvidos.”

Glossário

Fanado: Processo de iniciação dos jovens na vida social adulta, que inclui rituais como a circuncisão ou a excisão e a transmissão de conhecimentos.

Etnias:

A população guineense é constituída por várias etnias. Ao longo da reportagem referimos três grupos étnicos: Fulas, Manjacas e Mandingas:


Fanateca: Mulher que pratica a excisão feminina (ex.: as facas utilizadas pelas fanatecas podem passar de geração em geração).

Glossário

Animismo: Crença numa visão do mundo em que entidades não humanas, como animais, plantas, objetos inanimados - rochas, montanhas, rios - e fenómenos - trovão, vento, sombras - possuem uma essência espiritual. É comum em povos tribais indígenas.

Glossário

Animismo: Crença numa visão do mundo em que entidades não humanas, como animais, plantas, objetos inanimados - rochas, montanhas, rios - e fenómenos - trovão, vento, sombras - possuem uma essência espiritual. É comum em povos tribais indígenas.