O Porto/Post/Doc leva três edições, mas de acordo com Dario Oliveira podiam ser muitas mais. O diretor do festival aponta o dedo a Rui Rio. Nesta entrevista ao JPN, Dario Oliveira admite que formar um público não é fácil, mas reforça que “não há públicos estúpidos”. Entende o cinema como um quinto poder, considera que o cinema nacional é “riquíssimo” mas que os portugueses não gostam de se ver ao espelho no cinema. Mostrar cinema na Baixa do Porto é para o responsável uma bandeira e por isso a reabertura de cinemas como o Trindade é uma boa notícia, mas Dario Oliveira não deixa de olhar aos perigos associados: “abrir um cinema todos os dias é um ato de coragem”.

JPN: O que leva um diretor de um festival de curtas-metragens a começar um festival de documentários?
Dario Oliveira: É uma longa história. Primeiro, com o Curtas, sempre houve uma vontade minha para que o festival fosse para outras áreas. Ao fim de duas décadas achei que era tempo de recomeçar com um projeto novo, um projeto meu. É um projeto a solo com banda. Somos um trio, eu, o Sérgio Gomes e o Daniel Ribas. Por outro lado, a história do documentário é uma história muito antiga com quase duas décadas também. Na Porto 2001, Capital da Cultura, fui um dos programadores e coordenador da área de audiovisuais e cinema e nessa altura foi criado um festival de documentários que se chamava “Odisseia das Imagens”. Foi um projeto de formação que envolveu a cidade toda, com workshops, oficinas, programação mensal – uma coisa muito grande e que mobilizou a cidade de tal forma que tudo o que fazíamos estava esgotado – havia um público. Em novembro de 2001 houve eleições e o presidente da Câmara eleito impediu-nos de continuar este trabalho. De que forma? Nem sequer nos recebeu para podermos apresentar o projeto e dar continuidade. Portanto, nós aparecemos quando o Rui Rio sai de cena. Se tudo tivesse corrido bem, se politicamente não tivesse havido este impedimento, aparecíamos ao mesmo tempo que o Doclisboa, que nasceu nessa altura também, um festival com quem continuamos a ter uma relação muito estreita e de profundo entendimento e complementaridade.

15 anos [de espera] e duas edições depois, acha que está a ter uma boa receção?
As minhas expectativas são sempre de que as coisas vão dar certo, mas é preciso tempo para elas se imporem. As grandes questões deste festival são uma montagem financeira que continua a ser difícil, e ao mesmo tempo chegarmos a um público. Não há públicos estúpidos, que não gostem disto ou daquilo porque só gostam de um tipo de cinema – isso não existe. As pessoas são inteligentes e têm uma grande necessidade de cinema, assim como tem uma necessidade de arte. O cinema é só uma dessas fruições que fazem falta às pessoas. Um festival de cinema tem que cumprir essa missão pedagógica, e ao mesmo tempo de entretenimento, de ser um pólo de agregação de públicos diferentes. Isto é muito difícil de se fazer numa altura em que o cinema existe em todos os suportes e as pessoas já gostam de ver cinema sozinhas em casa em frente ao ecrã do computador ou do iPad. Agora é preciso desmontar isto tudo e trazer as pessoas de novo à sala de cinema, fazer com que as pessoas se lembrem que foi numa sala de cinema que aprenderam a gostar de filmes, e aos mais novos fazê-los descobrir a magia da sala de cinema e da partilha desta com mais cem ou quinhentas pessoas para ver um filme. Nós queremos ter muito mais público, mas sem sair da Baixa. Aquilo que acontece no festival é especial, é o público participante confiar num grupo de programadores que lhes está a mostrar algo que não existe noutros suportes . Os festivais existem para isso, não é para mostrarem o óbvio, para fazerem descobrir o que há para além do óbvio. E isso é muito importante acontecer, esta redescoberta do que é o cinema, do que é o tempo para usufruir de cultura. Cada vez há menos.

Porquê o nome Porto/Post/Doc?
Porto/Post/Doc é um nome aparentemente complicado que define, em si, aquilo que nós somos: um festival que mostra cinema documental e tudo o que está para além do documentário. Post Doc é uma denominação que não tem nada de académico, não é um post doc, mas é o que vem para além do documentário. E para além do documentário vem esse tal novo cinema do real, que mistura elementos e linguagens e que é cada vez mais o cinema que se produz internacionalmente.

Até agora, após estas edições, pensa que o festival mudou a ideia em Portugal em relação ao cinema documental?
Em Portugal não diria, na cidade espero bem que sim (risos)

Sim, mas já tem visibilidade fora do Porto..
Tem. Eu já trabalho nisto há um quarto de século e, geralmente, as últimas pessoas a acreditarem nos projetos são as do lugar onde as coisas acontecem. Foi assim em Vila do Conde há 25 anos, foi no Porto quando nós aparecemos. Mesmo assim, nós podemos contar com quase 10 mil espectadores, o que dá uma dinâmica de festival, com mais ou menos mil pessoas por dia – o festival tem nove dias – é um bom número.

Falando da atualidade, acha que a crise despertou as pessoas para o cinema documental, por ser um cinema que permite mais proximidade ao real?
Isso é uma grande questão. Primeiro, porque os portugueses não gostam muito de se ver ao espelho no cinema. Outras culturas fizeram exatamente disso a sua história no cinema, como é por exemplo o cinema francês, inglês, americano, brasileiro. Os portugueses não gostam, naturalmente, de se ver ao espelho, não há muita ficção sobre – há alguma e a que há é excelente, mas não há muita. Por outro lado, há uma coisa que é um facto, há imensas histórias para contar, e a história da revolução digital e da acessibilidade às câmaras mais baratas, à edição feita de outra maneira, potenciou mais produção de documentários do que cinema de ficção, que acaba por ficar mais caro e exige outro tipo de estruturas de preparação. O que me parece é que, neste momento, é aqui que está o cinema mais interessante – para onde ele vai, não sei. As pessoas gostam de ver documentários também porque há documentários de sucesso. Há documentários na última década a estrearem nas salas comerciais e com grande sucesso – se é documentário faccioso, politicamente de gosto duvidoso, isso é outra discussão, mas de facto os documentários voltaram a estar nas conversas de café.

Na programação vemos a procura pela discussão dos documentários. Há uma preocupação em despertar o sentido crítico?
É muito importante falar-se de cinema – não só trocar aquela velha impressão muito esgotada que é: “Gostaste?”, “Sim, gostei”, “Não gostei” e não se fala mais de cinema – isso é péssimo, é o fruto de um hábito muito mau que é o de “não ter tempo para”. E nós queremos ter tempo para falar de cinema, para ouvir falar de cinema, para aprender para além do tempo que se está a ver o filme. É muito bom fazê-lo, nós fazêmo-lo com vários níveis etários e escolares. Há um projeto a que chamamos “School Trip”, que tem duas secções, a Teenage para o secundário/universitário e o Mini para o pré-primário e o primeiro e segundo ciclo, em que os miúdos vão trabalhar os filmes que vêem depois, na sala de aula, com a elaboração de fichas de visionamento e a discussão dos filmes. Aí aprende-se imenso, com o olhar menos irónico, mais puro, mais ingénuo dos mais novos ao verem os mesmos filmes que nós vemos. Eles vêem mais coisas e de uma forma muito mais interessante do que um público adulto já cheio de ideias e preconceitos. Ideias feitas que importa desmontar e voltar a construir. Espaço de discussão de cinema é muito importante. Só assim é que se forma um público para cinema. Senão o público para cinema vai desaparecer.

Há quem se refira ao jornalismo como “o quarto poder”. Acha que o cinema tem lugar como um “quinto poder”, no sentido em que pode ser uma arma?
Claro. Principalmente o cinema documental. Sempre foi. O cinema documental não é o cinema de propaganda. A propaganda vista como tal, e já se fez cinema de propaganda comprometido ideologicamente, nomeadamente com regimes fascistas e ditatoriais, serve para enganar. O cinema documental é uma forma de espalhar ideias, de consciencializar, de formar mentalidades e de fazer com que as culturas e as civilizações avancem. Isso sempre esteve presente desde que há cinema, e antes de haver cinema havia histórias, havia literatura e havia música e pintura. Essa é uma missão muito mais abrangente do que falar só de cinema, esse é o papel da arte. É quebrar o institucionalizado e fazer as pessoas avançar, fazer as pessoas interpelar, o tal ver-se ao espelho, o que é que está certo e o que é que está errado. O cinema tem esse papel, através da sua linguagem, através das metáforas, através de uma gramática muito própria, e através dessa força que tem de estar presente em todo o lado. Um filme sobre determinada história, determinada realidade, pode fazer com que essa história, que muitas vezes é fechada numa comunidade, possa ser descoberta pelo mundo todo. Um exemplo disso é o de um documentarista americano, Errol Morris, um dos grandes documentaristas da atualidade. Através de uma investigação que estava a fazer para um documentário sobre alguém que estava no corredor da morte, fez com que o processo fosse reaberto, graças ao filme, e que se descobrisse que havia uma série de polícias que tinham mentido. Houve aqui um “turn over” da história, e a história foi olhada de tal forma que essa pessoa se salvou da cadeira elétrica, graças a um filme.

Há pouco disse que um dos propósitos era levar novamente as pessoas às salas de cinema. Considera que continua a ser uma luta difícil?
Não é uma luta difícil, é uma luta que demora. Pode ser olhada como difícil, mas demora. Demora porque as pessoas perderam um hábito – o hábito de irem ao cinema. Não aconteceu só no Porto nem só no nosso país, aconteceu em todo o mundo ocidental. A partir do momento em que as cidades se esvaziam dos seus habitantes, que iam ao cinema no bairro e na rua onde moravam. Aconteceu de Paris a Buenos Aires. As pessoas deixaram de ir ao cinema com a mesma curiosidade que tinham há 30, 40, 50 anos. A Internet veio baralhar ainda mais as coisas. As pessoas moram nas periferias, nas periferias estão os centros comerciais. Estes não podem arriscar, só têm que mostrar cinema que dê certo, então mostram todos os mesmos filmes. Portanto, fazer com que as pessoas sintam outra vez prazer em ir ao cinema é uma tarefa que carece de muito trabalho. Como? As pessoas vão muito mais facilmente a um festival de cinema do que vão ver uma sessão à segunda-feira a noite. Porque não têm tempo, porque não é prático, porque não há lugar para estacionar, tudo são desculpas. Eu lembro-me do tempo em que os meus pais vinham de Vila do Conde ao Porto para irem ao cinema, porque tinha de ser, porque queriam mesmo ver um filme. Hoje em dia isso quase já não acontece com ninguém, nem com os mais novos, e é pena.

A questão da reabertura do Cinema Trindade trouxe reações bastante positivas. Acha que isso deriva da memória do passado ou é mesmo interesse do público?
Hmm. (risos) Abrir um cinema todos os dias do ano é um ato de coragem, porque a fórmula económica de ter um cinema aberto e ser uma fonte de rendimento é, hoje em dia, cada vez mais difícil. Podemos fazer uma volta ao Porto, ver onde estão os cinemas fechados, porquê e quando fecharam, e o que é que é aquela comunidade, o que é que se passa naqueles bairros. Há aqui um cinema perto [estamos no Estádio do Bessa], há vários, um no Foco, está fechado, outro em Guerra Junqueiro, está fechado. São cinemas muito bonitos, são salas que eu frequentei, onde aprendi a gostar de cinema, que fecharam porque deixou de ser rentável. Abrir em 2016 ou 2017 uma sala de cinema na baixa do Porto é acreditar, e ainda bem que é acreditar, porque nós [Porto/Post/Doc] também existimos como cinema na baixa e programamos uma sala de cinema no resto do ano. Durante 50 semanas mostramos filmes no Passos Manuel, que já foi um cinema de bairro que estava aberto todos os dias. E temos um público fiel. Mas acreditar que as pessoas querem mesmo ir ao cinema é um trabalho de fidelização de públicos que está por fazer nesta cidade. Portanto é preciso a ajuda da Cultura da Câmara do Porto, é preciso empresários corajosos como o caso da Cristina e do Américo que vão abrir o Trindade. Eu gostava que houvesse outros, mas o público tem que estar desperto para estas coisas. Eu acho que se não houvesse tantos centros comerciais facilitava a vida das pessoas.

Há pouco, falar da comercialização do cinema, era relacionado com os centros comerciais.
Há muitas coisas a investigar e a fazer. No Grande Porto há 90 e tal salas de cinema. Essas salas de cinema, embora sejam 90 e tal, não correspondem a uma oferta de 96 filmes, correspondem a uma oferta de 20 e tal filmes. Os filmes são todos os mesmos em cada shopping. Isso é uma formula que já deu certo nos Estados Unidos e hoje em dia os centros comerciais estão a fechar. Aliás, começam a fechar aqui também. E quando fecharem, os cinemas também vão fechar. O público universitário, os estudantes, que são as pessoas que ainda assim têm mais tempo, vão muito poucas vezes ao cinema. Começa aí. Eu digo aos meus estudantes novos e velhos: ser curioso é meio caminho andado para ser um estudante de sucesso. E a curiosidade passa por conhecer cinema. O cinema de autor enquanto tal também é uma coisa que quase desapareceu.

Não sendo um futurologista, acha que há um futuro para o cinema português?
O cinema português tem alguns detratores e muitos apaixonados. Mas tem uma particularidade: é bom que esteja sempre pronto para viajar. Porque o nosso país é pequeno em termos de salas e em termos de dimensão de mercado. Qualquer filme feito em Portugal não deve ser feito a pensar só nos portugueses. Deve ser feito a pensar no cinema. E os autores que acreditam nisto têm os seus filmes vistos no mundo inteiro e a viajarem por festivais, têm distribuição em alguns países, e são os que fazem mais público. Ao contrário do que muita gente acha, o Manoel de Oliveira é dos autores portugueses com mais público, porque tem muito público internacional. Como é óbvio. Qualquer filme, curta metragem ou longa, documentário, ficção, tem que sair de Portugal para ser visto. Filmes de João Pedro Rodrigues, Manoel de Oliveira, João Botelho, Marco Martins, Sérgio Tréfaut, tantos filmes, tantos autores portugueses, que até nem são assim tão bem recebidos cá como lá fora. Essa é a verdadeira essência do cinema português, sempre pronto para viajar.

Acaba por ser um pouco a essência dos portugueses também, atualmente…
Sim. É. É porque, sem querer ser simplista, eu não percebo porque tenho que comprar uvas vindas da África do Sul quando há uvas em Portugal ou maçãs vindas do Chile quando temos cá tão boas maçãs. O que nós estamos é comprometidos com um sistema económico profundamente perverso que faz com que as pessoas às vezes acreditem em coisas que não são muito importantes. O cinema feito em português é um cinema riquíssimo, muito frágil, por ser feito por pessoas que acreditam de facto na nossa cultura; que tratam os temas com uma subtileza e com uma sabedoria que depois lá fora são olhados como tal, como artistas. “O Ornitólogo”, filme do João Pedro Rodrigues que está a fazer poucos espetadores cá, passa em média por mês em 10 festivais no estrangeiro, e é visto por milhares e milhares de pessoas. Se se visitar o site do Instituto do Cinema e Audiovisual, procurando os “Balas e Bolinhos” e os “Pátios das Cantigas”, é impressionante, “ – Tantos públicos para estes filmes!” São públicos em Portugal. E o resto do mundo? Qual é o festival que quer distribuir estes filmes? Depois há o problema do investimento e retorno. Antes de falar deviam perceber como é que funciona o mecanismo, e que dinheiro é que é gasto no cinema português – é uma percentagem tão pequena do Orçamento de Estado, é uma percentagem tão pequena do dinheiro que vai para a Cultura, que é ridículo estar a discutir esses números.

Chegando ao fim a terceira edição do Porto/Post/Doc, qual o próximo passo?
Trabalhar para o seguinte, logo a seguir, já estamos a trabalhar para o seguinte.

Sempre a pensar no futuro?
Temos que o fazer porque a programação é feita de uma teia de ideias e de hipóteses. É preciso fazer confluir em dezembro no Porto uma série de filmes, de autores, de temas que sejam pertinentes, que interessem à cidade. Acaba por ser uma viagem, uma viagem pelo mundo do cinema que não pode dar saltos de uma edição para a outra, há uma continuidade que depois as pessoas se vão percebendo, por irem vezes seguidas ao festival. Do nosso trabalho, quais os nossos objetivos – são vários. Crescer juntos.

Artigo editado por Filipa Silva