Ainda não se tinham ligado as luzes e o cenário já denunciava o registo intimista da atuação que aí viria. No centro de um palco imenso, como é o da sala Suggia, esperavam duas guitarras, uma cadeira, uma mesa e duas garrafas de água. Pouco passava das 21h30 quando Mallu avançou sobre o palco, com ruído citadino de fundo.

Os primeiros acordes da recente “Casa Pronta” ecoaram e emergiu, na enorme tela por trás de si, o primeiro plano dos arranha-céus que a iriam acompanhar no resto do concerto. Depois de abrir com a única faixa revelada do seu novo álbum, a lançar no próximo carnaval, Mallu volta ao tempo de Pitanga, com a delicada “Ô, Ana”.

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O balançar da bossa-nova prossegue com “Sambinha Bom”, que traz consigo o amanhecer na cidade em volta. A música quente e aconchegante, que relembra o mar quieto e dias soalheiros quase contrasta com a paisagem urbana.

Após três músicas tocadas de rajada, a artista faz a primeira intervenção. “É a última noite dessa jornada”, anunciou. “Chegar aqui numa casa tão bonita e ver vocês banhando essas cadeiras é um privilégio”, acrescentou sorrindo. E mantém a coerência ao dar continuidade ao concerto com a animada “Me sinto ótima”, da Banda do Mar, projeto que mantém com Marcelo Camelo e Fred Ferreira.

“Essa aí quero ver quem lembra”, desafiou, e vai a 2008 buscar “Tchubaruba”, a primeira música que compôs e que introduziu a língua inglesa na atuação, que se prolongou em “Lost appetite”. Mesmo de olhos fechados, qualquer um entende que a jovem paulista canta a sorrir. E não poderia ser de outra maneira.

“Chega de saudade” no momento da noite

“Vocês estão muito quietinhos”, disse ao público, incitando-o à interação, como já tinha feito há dois meses e pouco, um pouco mais a Norte, no Festival para Gente Sentada. “É o meu vestido, ele é muito imponente”, articulou num enorme e permanente sorriso, e referindo-se ao seu discreto vestido branco. E consegue o que quer, descongela a plateia, que ri com ela.

Em “Olha só, moreno” introduz melodias improvisadas, que entoa de forma angelical, e com uma aparente facilidade que deixa qualquer um perplexo. Mas o momento que marcou a noite só viria depois.

Mallu levanta-se do seu trono e dá uns passos em frente, já sem a armadura da guitarra. É assim, totalmente desprotegida, exposta pelo o holofote, que Mallu canta, a cappella, as primeiras palavras de “Chega de Saudade”, de Tom Jobim. A cidade projetada desaparece e a sua frágil figura contrasta com a sombra ampliada cem vezes, que lhe segue os movimentos na tela. É um momento comovente, em que Mallu canta com o coração nas mãos, em que se ouvem todas as respirações e pequenas falhas na voz. Se havia qualquer resquício de dúvida acerca do seu talento, é aqui aniquilado.

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Após o incessante bater de palmas, a cantora anuncia que é altura de tocar músicas de outras pessoas, “para o show não ficar tão egoísta”, e traz-nos a velhinha “Janta”, cuja versão original é um dueto com o marido e parceiro de banda, Marcelo Camelo. Mas Mallu ainda volta ao seu reportório, com “Cena” a denunciar o seu “coração vulcânico”.

Mais uma vez, agradece e os obrigados saem em torpedo, uns atrás dos outros. “É uma noite tão bonita e [isto] está cheio”, desabafa, e avança novamente para o território da Banda do Mar. “Seja como for” e “Mais ninguém” já incitam o canto da plateia, mas é com a conhecida “Velha e Louca” que o tímido público levanta a voz sem medo.

Depois de uma pequena pausa, em que desaparece por segundos do palco, retorna com a bossa de Jorge Ben Jor, “Por Causa de Você, Menina”. E faz o anúncio inesperado: “Esta é a penúltima”. “Que linda, essa, adoro. Pena que não fui eu que a fiz”, acrescenta, antes de soltar os primeiros acordes. Trata-se da balada “Baby”, d’Os Mutantes, que Mallu tornou tão sua que pouca gente diria que não é original da jovem cantora.

O hino das exigências “Muitos Chocolates”, também da Banda do Mar, foi deixado para o fim e alegrou a plateia, que se levantou para aplaudir. Mallu despede-se e, durante largos minutos, as palmas mantêm-se, julgando tratar-se do bluff habitual. Mas as portas laterais da sala abrem-se, as luzes acendem-se e o palco permanece vazio.

Depois de uma hora de concerto, a voz doce de Mallu abandona o palco e não volta mais. E é impossível não ficar com água na boca e com moderado desconsolo por, às 22h40, ver já a sala vazia. “Foi bonita a festa, pá”, mas soube a pouquinho.

Artigo editado por Filipa Silva