“Depois do Fim”  não é uma coletânea das muitas reportagens que Paulo Moura fez no terreno em situações de conflito e crise. O jornalista, que esteve este sábado no Porto para apresentar a sua obra, quis fazer outra coisa. Uma “Crónica dos Primeiros 25 anos da Guerra das Civilizações”.

O muro de Berlim caiu e com ele o Bloco Soviético. A bipolaridade encontrou um fim, mas o equilíbrio não chegou. Os conflitos proliferaram e o jornalista do “Público” passou por vários deles ao longo destes 25 anos.

No livro, editado pela Elsinore, quis perceber o que une conflitos tão diversos como o da Argélia, onde esteve em 1991, com o da Tchéchénia, Caxemira, Kosovo, Afeganistão, Iraque ou Sudão, passando pelas praças das Primaveras Árabes ou ainda pela crise dos refugiados.

O JPN foi encontrar o repórter em sua casa, na Ericeira, após o lançamento do livro, em Lisboa, há cerca de um mês. Nesta entrevista, Paulo Moura aponta responsabilidades ao islamismo radical, mas recusa que o Islão e a democracia sejam incompatíveis.

JPN: O que é que 25 anos como repórter de guerra lhe ensinaram sobre esta “Guerra das Civilizações”?
Paulo Moura: Este livro foi escrito hoje, mas com base nas reportagens que foram escritas ao longo destes 25 anos. Começou com o conflito na Argélia [1991] e foi por aí fora. Eu decidi fazer o livro porque tenho uma situação um pouco privilegiada de ter podido fazer isto como jornalista. Em Portugal, há muito pouca gente que tenha estado nestes lugares todos. Foi um privilégio para mim, mas ao mesmo tempo senti que tinha um pouco a obrigação, agora, de escrever isto e deixar escrito para pessoas mais jovens poderem ler, como uma sequência. O livro não é uma compilação de reportagens que eu escrevi. Isto não é uma antologia. Percebi que havia uma sequência nestes 25 anos a que chamo “Depois do Fim”, como uma referência à História. Até hoje, os conflitos e grandes guerras que envolveram vários países têm algo em comum. Quase todos implicam o islamismo radical e algum conflito entre os valores ocidentais e os países islâmicos. Esse é o fio condutor que encontrei e que se desenrola na guerra da Síria, no Estado Islâmico e na crise dos refugiados.

O que é que é preciso para se ser um repórter de guerra? Quais são as particularidades do jornalismo de guerra?
A guerra em si é um tema. É um acontecimento e eu tenho de me adaptar aos acontecimentos. Mas, na minha perspetiva como repórter, não considero que seja uma especialidade do jornalismo. Claro que há técnicas que se aprendem. Há, de facto, algumas características que as pessoas precisam de ter. Eu acho que não é qualquer pessoa [que deve fazer jornalismo de guerra], mas aí falo tanto de jornalistas como de pessoas que trabalham em zonas de conflito. É uma questão de temperamento e uma pessoa só sabe, quando vai pela primeira vez. Pessoas demasiado sensíveis ou pessoas que não têm frieza suficiente não devem fazer este trabalho. Colocam-se em risco a elas e aos outros.

Vamos falar sobre o Estado Islâmico. E sobre o conflito na Síria. Acredita que o Daesh é produto dos interesses norte-americanos no Médio Oriente?
Isso é uma pergunta difícil. Se fosse só assim, a situação resolvia-se facilmente. Isso é uma das partes da realidade. É verdade. Isso é uma coisa que se constata lá, estando no terreno. Se seguirmos a História, isto vem desde a guerra no Afeganistão. Na guerra contra a União Soviética, os EUA treinaram e financiaram os mujahidin radicais islâmicos para combaterem a URSS e criaram campos de treino. Terminada a guerra, essa gente ficou desempregada e eu encontrei-os na Argélia, em 1991. Os chamados “afegãos” [argelinos que tinham ido para o Afeganistão combater]. Já com todo o “know how” de combate. Tinham essa escola, tudo pago e financiado pelos EUA. E ainda mais flagrante do que isso foi a guerra no Iraque. Aquela guerra foi feita em nome das ligações do Saddam com os radicais islâmicos. Mas era mentira. Não havia ligação nenhuma, nem armas de destruição maciça. Depois de terem destruído o regime, o Iraque tornou-se no centro do Daesh. Isso foi criado, muito claramente, pelos EUA. Mas isto foi apenas uma das componentes. A outra foi todo o descontentamento da juventude do mundo muçulmano e das novas gerações muçulmanas de emigrantes. É algo genuíno. Não é fabricado. Não podemos ter uma visão de conspiração. As coisas têm a sua realidade autêntica, ainda que depois haja um confluir de vários fatores.

Falou do facto da juventude islâmica que emigrou se sentir pouco integrada no Ocidente. Considera que o Islão é incompatível com a democracia ocidental?Não concordo nada. O islão não é incompatível, porque o regime político não tem nada que ver com religiões. Os regimes democráticos são compostos por toda uma mistura de influências culturais que incluem não só o Cristianismo, mas também o islão. O islão foi importantíssimo na formação da cultura europeia. Por isso, se o islão é incompatível com a democracia, o cristianismo também o é. Qualquer religião.

E como é que consegue interagir com terroristas?
Elas tinham violado, assassinado… e estavam ali a contar-me tudo. Claro que não diziam que eram os criminosos. A ONU já os tinha classificado como genocidas. Eles diziam que eram os interesses americanos e que estavam a ser prejudicados, não diziam que estavam a cometer genocídio. Tinham as razões deles. Mas perguntas-me como é que tenho cara para falar com eles?

Sim.
É preciso ser um pouco maluco para o fazer. (risos) É possível falar de qualquer assunto com qualquer pessoa, ainda que tenhas de escolher determinados termos. Não posso chegar e dizer: “Mas então o senhor está a cometer um genocídio?”. Não podes fazer isso, mas também não lhe podes dar razão. Deves manter a neutralidade. Respeitá-lo, sem nunca lhe dar apoio. Tens de ter muita informação cultural sobre a região para estabeleceres a comunicação.

 Ter frieza é importante para que o jornalista consiga ajudar as pessoas através do ato de denúncia?
Não de denúncia. Eu não acredito nesse jornalismo de causas. Defender uma causa não é jornalismo. Acredito que o jornalismo em si é uma causa, mas, para ser útil, tem de ser imparcial, tem de ser justo e ouvir todas as partes. Mostrando tudo de uma forma honesta, é como eu contribuo para a resolução dos problemas.

Relacionado com essa discussão. A Turquia, recentemente, bloqueou o acesso às redes sociais e foram presos 125 jornalistas.
É o país com mais jornalistas presos no mundo.

A crise e a instabilidade política poderão gerar uma guerra contra o jornalismo?
Sim. Mesmo antes da Turquia. Essa guerra começou com o fenómeno do fundamentalismo islâmico. Antes, o jornalista era uma pessoa protegida. Estava numa posição privilegiada. Tinha condições especiais. As pessoas queriam ter um jornalista por perto para mostrar o seu lado da razão. Mas isso está a mudar. Para certas personagens, o facto de alguém ser jornalista já é um sinal de hostilidade. O jornalista torna-se um inimigo. No mundo do fundamentalismo islâmico, o jornalista é um representante dos valores da cultura ocidental. Não valorizam a liberdade de expressão e a imparcialidade.

“Vai haver menos jornalistas. Os que vão sobreviver vão ser os muito bons. No futuro, o jornalista vai ter uma profissão tão exigente como um médico.”

Aquilo que gosta que os alunos retenham é que não tenham medo de praticar porque o jornalismo se aprende fazendo?
Claro. Não quer dizer que a parte teórica não seja muito importante. Há alunos que desvalorizam isso e escolhem os cursos que são mais práticos e querem é aprender a fazer. Acham que as disciplinas de Semiótica e História são uma perda de tempo. Eu acho que não. Essas disciplinas são importantíssimas. Se calhar, até mais do que as outras. Porque as práticas depois podem ser aprendidas quando se começa a trabalhar. Mas aprender a fazer jornalismo, aprende-se na prática, sem dúvida.

Acredita que a nova vaga de jornalistas vai ter um background maior do que os jornalistas atualmente?
Sim, têm tudo para isso. Se não o fizerem, a culpa é vossa! Claro que há vários problemas como a falta de emprego. Mas eu acredito que, de uma forma ou de outra, se vá resolvendo. Pode acontecer é que, no futuro, haja menos jornalistas do que há hoje. Hoje em dia, por existirem computadores e Internet, não são precisos tantos jornalistas. Mas no mundo tal como o conhecemos, o jornalismo continuará a ser necessário, cada vez mais. Portanto, a profissão continuará a existir. As novas gerações de jornalistas estão muito mais bem formadas e preparadas do que as antigas. Vai haver menos jornalistas. Os que vão sobreviver vão ser os muito bons. No futuro, o jornalista vai ter uma profissão tão exigente como um médico.

O que é que aspirantes a jornalistas devem reter?
Várias coisas… Por um lado, em termos muito pragmáticos, acho que é muito importante dominar os vários meios. É preciso saber escrever bem, que é a base de tudo. Mas depois é uma vantagem imensa dominar os vários meios. Uma pessoa que saiba escrever, mas que também saiba recolher imagem, editar vídeo e áudio tem emprego. Mas há muitas pessoas que sabem editar vídeo e não são bons jornalistas. O fundamental é saber ser jornalista. Isto é, saber perceber por instinto o que é e não é importante. É também preciso saber contar uma história. Pegar na informação e fazer uma história que seja significativa, interessante e com um princípio, meio e fim. Estas são as técnicas que os jornalistas têm de dominar. Há também a parte ética. O jornalista é aquele que vai trabalhar sem ter o interesse de ninguém por trás.

Artigo editado por Filipa Silva