Numa altura em que o Governo prepara um novo plano nacional de apoio aos sem-abrigo, o JPN ouviu diversas associações que operam no setor para saber o que recomendam à tutela.

O Governo comprometeu-se a apresentar até ao final de março um novo plano nacional para cidadãos sem-abrigo. O Ministério da Segurança Social considera necessário que sejam feitas alterações à Estratégia Nacional para Integração de Pessoas Sem-Abrigo, que vigorou entre 2009 e 2015.

A Comunidade Vida e Paz elaborou uma petição, com mais de 4 mil assinaturas, que solicita a criação de um novo plano nacional de apoio aos sem-abrigo ou a continuação da estratégia nacional.

O que mudar?

A Associação dos Albergues Noturnos do Porto (AANP) presta apoio à população sem-abrigo, entre os 18 e 64 anos, durante 24 horas por dia, todos os dias do ano. O apoio passa pelo acolhimento noturno – são registadas anualmente 30 mil dormidas – pela alimentação, serviços de saúde, distribuição de roupa e reinserção social com atividades ocupacionais e entrevistas de emprego.

Em conversa com o JPN, Daniela Silva, assistente social da AANP, afirma que, para o novo plano, é primordial “ouvir os técnicos que estão no terreno” para que se possam colmatar as falhas existentes.

Para além disso, destaca que durante o processo de reabilitação e reinserção é muito importante permitir que o utente faça a gestão do seu próprio espaço e dinheiro. Para tal, sugere que se estabeleçam mais parcerias com entidades empregadoras que aceitem receber pessoas que se encontram “nesta condição”. Os técnicos que acompanham diariamente os utentes estabelecem uma ponte entre as partes.

Albergues do Porto

Albergues do Porto Foto: Rita F. Batista

A saúde é um dos campos mais preocupantes no ponto de vista de Daniela, que sugere um aumento do apoio do Governo a este nível. Mais de 75% das pessoas que chegam a esta instituição têm alguma patologia, do foro da saúde mental, como a esquizofrenia paranoide e a toxicodependência, que são as que têm mais prevalência. A união das forças entre as várias associações de apoio a sem-abrigo é um aspeto também apontado pela assistente social.

Os sem-abrigo são capazes

Movimento Uma Vida como a Arte é composta por um grupo de pessoas com experiência de viver na rua que promove encontros e atividades em conjunto. O principal objetivo é a reconstrução pessoal de cada indivíduo.

Em resposta ao JPN, António Ribeiro, representante do movimento, reforça a falta de apoio financeiro e orientação: “Não há diretrizes nem condições. Os grupos vão funcionando muito precariamente e quando me refiro aos grupos refiro-me aqueles que fazem parte das quatro plataformas do NPISA [Núcleo de Planeamento e Intervenção nos Sem-Abrigo]” Porto.

O NPISA é uma rede institucional que congrega dezenas de organizações com trabalho na área dos sem-abrigo. Estas entidades estão organizadas em quatro plataformas dedicadas à triagem e acompanhamento, ao voluntariado, à promoção do debate e ao emprego.

O movimento, refere António Ribeiro, sente a falta de um espaço físico onde possa prestar mais apoio e acompanhar de forma mais detalhada cada utente. Espera que com o novo plano possam receber mais apoio a esse nível.

António salienta que a última reunião com o objetivo de assinar uma nova estratégia de apoio aos sem-abrigo foi a 17 de março do ano passado, pelo que, na sua opinião, o assunto já devia ter sido fechado há muito tempo.

“As pessoas sem-abrigo são capazes, não são uns marginais como muita gente quer fazer ver, não é por mero acaso que assumem uma associação”, reflete.

Um novo plano feito “de forma participada”

Comunidade Vida e Paz acompanha cerca de 200 pessoas sem teto. Em resposta por email ao JPN, acrescentou: “Mais do que apontar falhas consideramos que o importante é realçar o que ainda poderemos alcançar se continuarmos a trabalhar de forma cada vez mais integrada e integral”.

Antes de formular alguma estratégia que tenha em vista apoiar os sem-abrigo, a Comunidade Vida e Paz defende que é crucial conhecer, perceber e atualizar as raízes do problema: “Consideramos que de futuro a intervenção seja numa lógica de governação integrada porque se trata de um problema social complexo que exige respostas de outra natureza”.

Albergues do Porto Foto: Rita F. Batista

A Comunidade Vida e Paz recomenda que as estratégias incluídas no futuro Plano Nacional para Integração de Pessoas Sem-Abrigo pelo Governo, o qual deve ser apresentado em março, sejam feitas “de forma participada e não apenas pelas estruturas públicas. Que se retomem os objetivos da estratégia anterior que não foram realizados. Que seja criado um sistema de informação partilhado para melhor acompanhamento das situações e da partilha de recursos. Que seja revisto e se invista numa medida de política social de habitação que tenha em conta as necessidades e características desta população-alvo. Que sejam revistos os procedimentos de apoios sociais quando estas pessoas estão em processos de tratamento e de capacitação. Que sejam revistas as respostas de apoio à reinserção social nomeadamente as medidas de apoio ao emprego e o estreitar da relação com as novas formas de apoio residencial da rede nacional de cuidados de saúde mental.”

“A estratégia deve ser nacional e funcionar em rede”

Existem cerca de 300 pessoas a serem ajudadas diariamente pelo CASA PortoNa grande maioria das vezes, o que leva alguém à rua está associado ao consumo de álcool ou drogas. “Por isso, é que devemos conseguir curar as pessoas (física e mentalmente) e só depois tentar reabilitar, nunca querendo dar passos maiores que a perna”, sustenta a associação.

Para ajudar os mais desfavorecidos, “existem mecanismos que foram criados por organizações” e outros “em parceria com a Câmara Municipal do Porto”, de que é exemplo o restaurante solidário que esta associação gere na Batalha. Olhando para o futuro, a organização ressalva que “o importante não são as diferenças, mas pensar no que todas as grandes cidades possam fazer de igual e em cooperação”. Partindo desta ideia, a instituição propõe “eliminar as dificuldades” de que é exemplo “a falta de comunicação a nível nacional“. “Se uma pessoa vem de Lisboa para o Porto, essa pessoa apenas pode ser ajudada em Lisboa, é lá que está a resposta adequada para ela, ficando assim numa situação bastante delicada no Porto. Com isto queremos dizer que a estratégia deve ser nacional e funcionar em rede a nível nacional”.

No entanto, a CASA reforça que é “importante que uma pessoa na situação de sem-abrigo tenha uma resposta imediata, independentemente das razões pelas quais está na situação de sem-abrigo. O número de emergência nacional [144] tem de funcionar como um número de emergência e ajudar, não pode funcionar como número de diagnóstico. É importante também que os técnicos capacitados estejam na rua e não apenas nos gabinetes, parece demagógico dizer isto, mas na realidade os voluntários é que servem como intermediários entre o técnico e o utente”.

Experiências de vida

Armando Pinheiro Foto: Rita F. Batista

Armando Pinheiro está nos Albergues do Porto há um ano. Tem uma incapacidade motora que lhe afeta 60% da mobilidade e acabou por ficar desempregado. Confessa que no ínicio, quando ficou sem trabalho e sem casa, pensou no suicídio: “atravessei a ponte, estive lá no meio e olhava para Gaia, para o Porto e olhava para o rio. Mas depois pensava para mim mesmo ‘eu vou seguir em frente e vou conseguir’. E esta casa [AANP] foi a única que me deu apoio quando eu não tinha nada”, contou ao JPN

“Eu quando trabalhava via sempre uma luz ao fundo do túnel, mas depois cheguei ao fundo do túnel e não havia nada”

Antes de chegar aos Albergues, trabalhou muitos anos. Agora está desempregado. “Eu quando trabalhava via sempre uma luz ao fundo do túnel, mas depois cheguei ao fundo do túnel e não havia nada”, sublinha. Na instituição portuense, Armando ocupa o seu tempo com aulas de teatro e de informática. Confessa que se não fosse o apoio que tem ali, não havia outra maneira de se conseguir alimentar e ainda hoje estava na rua. “Ainda bem que estas casas existem. Se isto não existisse a maioria das pessoas que estão aqui matavam-se.”

A criação de um novo plano nacional para cidadãos sem-abrigo por parte do Governo agrada a Armando, uma vez que tem esperança que se criem mais instituições de forma a dar resposta a todos os sem-abrigo que estão na rua: “As instituições são poucas e não dão resposta a tanta gente”. Armando sugere que se juntassem forças de todas as associações para poder apoiar mais gente, o que nem sempre se verifica. “Deixar alguém na rua e não ajudar é crime”, remata.

José Fernandes

José Fernandes Foto: Rita F. Batista

José Fernandes também vive nos Albergues há dois anos. Reclama falta de apoio por parte do Governo: “Os apoios são pouco amigos, só a fazer muita pressão é que se vai obtendo alguma coisa, mas muito pouco, nada de especial. Acho que estamos um pouco, no chamado terceiro mundo.”

Durante o seu dia, tem passado a maior parte do tempo à procura de emprego. Graças ao apoio da instituição conseguiu uma entrevista de emprego para breve.

“Nós às vezes somos vistos como marginais, ninguém quer saber, então eles [Governo] muito menos”

Tal como Armando e Daniela (assistente social), José considera essencial que se unam as forças das várias associações e instituições de apoio para que consigam adotar e executar mais medidas. A ação local é determinante: “Nós às vezes somos vistos como marginais, ninguém quer saber, então eles [Governo] muito menos”, entende.

As vantagens da estratégia aplicada até 2015

De 2009 a 2015 vigorou um plano a nível nacional para a integração, para prevenir, intervir e acompanhar os casos de sem-abrigo.

Daniela Silva, assistente social nos Albergues do Porto, destaca ao JPN que um dos aspetos positivos desta estratégia foi a junção de parceiros informais e instituições, que proporcionou “uma maior e eficaz intervenção e um acompanhamento mais próximo e personalizado dos diferentes casos”.

A técnica acrescenta ainda que o pensamento conjunto foi fundamental para a criação de novas linhas orientadoras de modo a intervir junto dos sem-abrigo, “nunca podemos pensar numa estratégia que irá erradicar a pobreza, ou seja, podemos e devemos ter prazos para avaliar e reavaliar, mas não de término”.

No âmbito da Estratégia Nacional para Integração de Pessoas Sem-Abrigo, foram criados os Núcleos de Planeamento e Intervenção Sem Abrigo (NPISA) que garantem a orientação e a ligação entre os grupos que operam no setor. Segundo António Ribeiro, representante do Movimento Uma Vida Como A Arte, “o NPISA tem funcionado muito bem, ao nível da estratégia. Por exemplo, em 2009 tinha cerca de 2.500 pessoas na rua na cidade do Porto e hoje não tem”, garante.

Apesar disso, António Ribeiro confessa que organizações como o Movimento Uma Vida Como A Arte funcionam “muito precariamente” e, mesmo após esta estratégia nacional, encontraram dificuldades em construir um espaço próprio e em reunir condições tecnológicas suficientes para ajudar os sem-abrigo.

Artigo editado por Filipa Silva