O Batalha ganhou vida para receber o ciclo “Um objeto e os seus discursos por semana”. O arquiteto Alexandre Alves Costa e a diretora do Atelier-Museu Júlio Pomar juntaram-se a Rui Moreira para falar do cinema emblemático que a câmara já anunciou que vai reabrir.

Já vamos na quarta edição do ciclo de debates semanais, uma iniciativa que surgiu em 2014 pela mão do ex-vereador da Cultura, Paulo Cunha e Silva, e que concretiza o seu ideal de “cidade líquida”, segundo o qual a cultura acontece em qualquer lugar.

No primeiro sábado de março, o evento, que quer mostrar aos portuenses o património material e imaterial da cidade, foi inaugurado num cine-teatro Batalha a rebentar pelas costuras.

A primeira intervenção coube a Alexandre Alves Costa, arquiteto convidado a reabilitar o edifício original de Artur Andrade, que o município arrendou e vai reabrir. Agarrado à folha de papel, rebobina até junho de 1947 e fala do nascimento e dos primeiros dias do Batalha. Manuel de Oliveira foi quem estreou as sessões de cinema, notou.

O sucesso do espaço foi imediato. Com os domingos de manhã gratuitos, as enchentes eram comuns, explica. Mas as personagens principais da intervenção de Alves Costa são outras: os artistas que, em colaboração com Artur Andrade, deram à obra um “carácter interventivo”. O pintor Júlio Pomar e o escultor Américo Braga estão entre aqueles cujas “intervenções artísticas neorealistas” cresceram em “oposição ao regime”, conta.

Foi sob as ordens de Luís de Pina, presidente da Câmara Municipal do Porto entre 1945 e 1949, que grande parte da decoração do edifício foi destruída: “Luís de Pina embirrou com a decoração. Não gostava de arte moderna nem de Júlio Pomar”. Até os “CB” das maçanetas foram removidos, talvez por “Cinema Batalha” ter as mesmas siglas que “Comité Bolchevique”, diz o arquiteto, causando o riso geral.

Mas a “arte-decorativa” foi quem mais sofreu as represálias. O fresco de Júlio Pomar foi picado por ter “um menino pobrezinho a comer uma sopa” e o baixo-relevo foi censurado: havia “uma camponesa com uma foice” e “um operário com um martelo”. A PIDE, diz Alves Costa, “picou o martelo”. É preciso “devolver o instrumento de trabalho ao proletário em causa”, disse, rindo.

Com a rouquidão a apertar-lhe a voz após longos minutos de discurso, o arquiteto falou do compromisso e da responsabilidade inerentes à reabilitação do Batalha, uma “obra heróica”, que é mais do que “a caixa encerrada onde estamos”, é uma obra “aberta à cidade”.

Pomar “adivinhou o impacto público que a obra iria ter”

Sara Antónia Matos, diretora do Atelier-Museu de Júlio Pomar, veio em representação do artista, autor de dois frescos do edifício, que pintou quando tinha somente 20 anos. O artista de 91 anos foi agora convidado a refazer os frescos que a PIDE mandou tapar em 1946.

Sara Matos recorda o que Pomar chegou a dizer numa entrevista: que teve uma “audácia destemperada” em ter aceite o desafio que lhe foi colocado por Artur Andrade. A diretora do atelier explica algumas das dificuldades da pintura a fresco, mas a complexidade transcende a metodologia: esta obra, e Pomar sabia-o, iria ter “impacto social e visual que nenhum outro seu trabalho tinha tido até à data”.

“Na altura de inauguração do cinema, o pintor estava preso” e o fresco de 100 metros quadrados não chegou a ser finalizado. Mas, mesmo no cárcere, Pomar soube “que as pessoas vieram, viram, indagaram-se sobre o porquê de [o fresco] não estar terminado e souberam o porquê”.

A obra foi terminada quando Pomar saiu da prisão, mas, pouco depois, o artista foi informado de que o painel seria destruído, conta a diretora. Pela plateia, passaram diversas folhas de estudos, rascunhos e fotos do trabalho do artista.

Sara Matos fala da “linguagem muito neorealista, cores soturnas, mãos e pés com presença muito forte” presentes no fresco principal e revela que foi “entre os andaimes [que usou para pintar o fresco] e o seu quarto que fez ‘O Almoço do Trolha’”, obra emblemática de Pomar.

O último a intervir foi Rui Moreira, que falou da hipersensibilidade ao neorealismo que, por causa da guerra, existia em Portugal. “No tempo em que na Europa correram os ventos da ditadura, a arquitetura acomodou-se”, diz, referindo-se à geração de arquitetos anterior a Artur Andrade. Mas o Batalha foi diferente.

O presidente da Câmara Municipal do Porto diz que, acima de tudo, não queria que o edifício “se tornasse num hotel qualquer” e relembra o momento em que pediu ao “mestre” e “amigo” Júlio Pomar que fizesse parte da reabilitação. Percebeu “pelo sorriso e pela vontade”, que Pomar ia aceitar a proposta.

“Estamos a fazer work in progress aqui no Porto”, diz Moreira. O autarca termina afirmando que “é fantástico ver a sala cheia” e que espera que o mesmo aconteça quando o Batalha reabrir.

Após as intervenções, e sem perguntas por parte do público, Moreira convida as pessoas a percorrerem os cantos do cine-teatro, que ganhou vida por uma hora neste sábado.

Ao longo do ano, estão agendadas mais 30 sessões da iniciativa “Um Objeto e seus Discursos por Semana”, com 90 convidados. A lista de objetos a que o ciclo semanal se dedica é extensa e inclui um cachimbo do poeta António Nobre, um esqueleto de baleia e o Bacalhau à Gomes de Sá, cuja receita tem origem no Porto.

Os próximos sábados serão preenchidos com uma conversa sobre o primeiro livro impresso no Porto, no Seminário Maior (11 de março), e uma visita à farmácia islâmica que se encontra nas atuais instalações do Museu da Farmácia (18 de março).

Artigo editado por Filipa Silva