Desde os 12 anos que M. se magoa a si própria. Diagnosticada com Transtorno de Personalidade Borderline, a adolescente usava “mais ou menos tudo que o que se consiga imaginar” para danificar o próprio corpo. Aos 19 anos, diz que os comportamentos autoabusivos se tornaram “uma coisa mais controlada”. Para M., não é uma questão de “agora vou fazer isto porque quero”. É aquilo a que recorre num momento de desespero.

Cerca de 20%, um em cada cinco, dos jovens coimbrenses entre os 12 e os 19 anos já teve comportamentos autolesivos. A conclusão é de um estudo dirigido por Ana Xavier, do Centro de Investigação do Núcleo de Estudos e Intervenção Cognitivo-Comportamental (CINEICC) da Universidade de Coimbra. Divulgado na última semana, o estudo foi desenvolvido ao longo de quatro anos, e envolveu 2.863 adolescentes das várias escolas do distrito.

Ao nível nacional, os números não são muito diferentes. Ainda em 2016, o estudo “Health Behaviour in School-aged Children” (HBSC) da Organização Mundial de Saúde reportava um aumento dos comportamentos autoabusivos. Cerca de 20% dos jovens inquiridos confessou ter magoado o próprio corpo no ano anterior. No estudo anterior, em 2010, apenas 15,6% respondera que sim.

Mais do que o estigma, M. sente que há “uma vontade muito grande de fazer de conta que não acontece”. Tem familiares que já lhe viram as marcas mas que, mesmo quando se fala do assunto, se recusam a acreditar que ela tenha tido esse género de problemas. “Não há um respeito pela doença”, diz.

Porque é que as pessoas se magoam?

Não há uma causa isolada que leve alguém a desenvolver comportamentos autoabusivos. Ao JPN, Diogo Guerreiro, psiquiatra e autor de vários estudos sobre o tema, salienta que “há várias motivações” para as pessoas se magoarem. Os comportamentos autolesivos podem ser estratégias de coping, pedidos de ajuda, ou até “formas de comunicação enviesadas” com o outro.

Também Ana Xavier, autora do estudo do CINNEIC, afirma que é importante ver o problema como “algo sério e complexo” que não pode ser reduzido a um único fator.

Para a investigadora, os comportamentos autoabusivos devem ser analisados como sintoma, “não como uma patologia particular”. E salienta que, embora tenham sido inicialmente associados ao Transtorno de Personalidade Bordeline, estes comportamentos aparecerem em muitos outros quadros clínicos. Guerreiro concorda. Diz que cerca de 90% dos que têm comportamentos autoabusivos têm uma patologia psiquiátrica.

Subculturas online preocupam investigadores

Com a evolução, há novos fatores a considerar. Ana Xavier revela ao JPN que “cada vez mais os investigadores se debruçam sobre o fenómeno dos blogues” que glorificam a prática. E não descarta a possibilidade de o fenómeno estar associado a um “processo de contágio”. Os adolescentes com estas tendências podem “procurar informação” que leve à manutenção dos comportamentos autoabusivos.

Diogo Guerreiro acrescenta que “tem de haver um maior controlo” dos conteúdos online. As páginas em que os jovens mostram as suas automutilações têm de ser imediatamente cortadas. “Não podemos negar a influência das culturas online”, salienta o psiquiatra, “é parte da vivência dos jovens e não há nada que nós possamos fazer contra isso.”

“Mil e uma alternativas”

Magoar o próprio corpo pode ser uma forma de lidar com as emoções. Ana Xavier chama-lhe uma “estratégia de coping mal-adaptativa”, a que as pessoas recorrem quando não têm estratégias para lidar com sentimentos fortes e negativos. Para a investigadora, a intervenção tem de ir no sentido de as desenvolver.

Diogo Guerreiro diz que há “mil e uma alternativas” à automutilação. A terapia pode ser focada na resolução dos problemas do dia a dia, ou até nas relações com família e amigos. Aprendizagem ou atividade desportiva podem ser substituições eficazes, e o importante é mesmo a estratégia “fazer sentido” para o paciente.

Acima de tudo, o psiquiatra salienta que os comportamentos autoabusivos não resolvem os problemas que os motivam. Há um “alívio temporário”, mas as pessoas não demoram muito a sentirem-se mal pelo que fizeram, ou a quererem magoar-se outra vez.

Em Portugal, há várias associações e linhas de apoio que podem ajudar.

Artigo editado por Filipa Silva